segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

MÚSICA DE VELHO, COISA CHATA: o clichê antimúsica erudita em "Intocáveis" de Olivier Nakache e Eric Toledano

 

A música não é uma linguagem
que se pode atravessar sem se deter
e cuja significação, transcendente ao signo,
pode ser conservada depois de este ter sido esquecido:
sua eventual "significação"
não tem referência com a realidade exterior,
qualquer que seja o nível em que nos coloquemos.
Roland de Candé in: "História Universal da Música, volume 1".
 
 
O aristocrata parisiense e seu cuidador suburbano
Faz pouco tempo, assisti ao filme "Intocáveis" (Intouchables, França, 2011). Fi-lo motivado pelos muitos comentários elogiosos que ouvi a seu respeito, mesmo que boa parte deles tenha vindo de pessoas que eu não poderia considerar "grandes especialistas" em cinema (vivemos num tempo em que há quem se julgue um "grande conhecedor" da sétima arte pelo simples hábito de ver filmes com a namorada no final de semana, mesmo que não saiba diferençar a importância histórica de O Nascimento de uma Nação, de D. W. Griffith, para o spaghetti western de Sergio Leone da década de 1960). Como, no entanto, creio que a formação de uma ideia depende do conhecimento da obra, deixei-me assistir ao filme, procurando não me guiar pela opinião alheia.

O filme é uma produção francesa e foi dirigido por uma dupla de diretores (Olivier Nakache e Eric Toledano), a mesma que assina o roteiro inspirado em uma "história real". Conta o drama de Philippe (Francois Cluzet), um homem de meia-idade riquíssimo, apreciador das formas mais refinadas de arte, que precisa contratar um cuidador que o auxilie em sua rotina de pessoa com deficiência (ele é tetraplégico). Na seleção que organiza, Philippe contrata Driss (Omar Sy), um sujeito desajustado, que vive no subúrbio pobre de Paris com uma família extensa e já teve até mesmo problemas com a polícia.   

Então, a trama desenvolve-se de maneira a focar a relação de contrastes extremos que pode haver entre duas personagens distantes social e culturalmente uma da outra: um branco, aristocrático e rico, tetraplégico e solitário; o outro, negro e pobre, ex-presidiário e desempregado, sem muitas perspectivas de crescimento profissional dado o seu reduzido grau de qualificação. Nesse contexto, seria possível a um desajustado como Driss cuidar de uma pessoa cheia de limitações como Philippe? E, mesmo em face de mundos tão separados, seria possível nascer daí uma amizade?

O filme de Nakache e Toledano busca responder a esses questionamentos. Mostra, assim, como Phillippe vai aos poucos adquirindo confiança em Driss, o qual, justamente por pertencer a um mundo nem um pouco elitizado, torna-se um cuidador diferente, que não se importa em tratar Philippe como uma "pessoa normal", seja para lhe oferecer um cigarro, dirigir um carro esportivo em alta velocidade ou contratar "belas massagistas que desenvolvem suas atividades em domicílio".  Essa condição tosca de Driss, que aparentemente poderia constituir um problema para alguém de gosto tão refinado como Philippe, acaba por constituir o elo amistoso paradoxal que há de permear todo o enredo, a atenuar, com bom humor, a difícil rotina de uma pessoa com deficiência - mesmo em se tratando de um tetraplégico milionário.

Trilha sonora de velório


Apesar da história de inegável potencialidade dramática, os diretores optaram por tratar a relação de ambos desde o viés da comédia. Omar Sy sustenta, com sua interpretação, um Driss atrevido e engraçado, cujos ditos chistosos divertem o espectador, levando-o a esquecer as muitas limitações e dificuldades que advém da tetraplegia de Philippe. E é aí que reside o grande problema da película. Os diretores, para tornar divertida a trama, recorrem a toda sorte de clichês já vistos milhões de vezes no cinema: a filha adolescente que tem o hábito de tratar mal os empregados e que necessita de uma autoridade que Driss há de reivindicar; a mesma adolescente que fica deprimida ante o rompimento com o namorado e pede a Driss que a ajude; o "choque" cultural entre o milionário colecionador de arte moderna e o cuidador ignorante, incapaz de ver qualquer beleza estética em um "punhado de rabiscos"; o temor dos amigos de Philippe ante a ficha criminal de Driss; a maneira com que Driss encoraja Philippe a aproximar-se da mulher com quem mantém um relacionamento amoroso epistolar; o parente de Driss que começa a envolver-se com traficantes do subúrbio parisiense onde mora. São clichês problemáticos nem tanto pelo fato de serem repetidos, mas, sobretudo, porque mal conduzidos pelos diretores: eles inauguram subtramas resolvidas sempre de maneira insatisfatória (como no caso dos traficantes de drogas no subúrbio e do relacionamento problemático de Driss com a mãe), quando não totalmente previsíveis (como no caso do namorado da filha adolescente de Philippe). Dessas subtramas, talvez a única que traga alguma surpresa no desfecho seja a que decorre do assédio lúbrico que Driss impõe à assistente de Philippe, a bela Magalie (Audrey Fleurot). De resto, nada do enredo difere de outras tantas comédias dramáticas convencionais.  

Particularmente, dentre os clichês a que recorrem os diretores para exemplificar o abismo cultural entre Philippe, o aristocrata parisiense, e Driss, o imigrante negro, pobre e suburbano, chamou-me a atenção a cena do aniversário. Nela, vemos uma festa organizada pelos amigos e parentes do milionário francês, descrita pelo próprio com fastio, já que lhe parece antes uma demonstração comiserativa forçada a uma legítima e espontânea celebração. Pois é justamente nesta cena que reside um dos clichês cinematográficos mais irritantes. Eu o chamo de "clichê antimúsica erudita". 

A cena do aniversário é retratada como uma comemoração solene, com pessoas vestidas em trajes a rigor. Apresenta-se uma espécie de conjunto de cordas, a executar peças de música erudita ao gosto do aniversariante Philippe, um cultor das artes mais refinadas que o gênio humano já foi capaz de produzir. Os presentes, todos senhores e senhoras mui respeitáveis, estão sentados, tomados por um ar grave, quase como se o clima fosse de um velório, onde a música erudita representa a trilha sonora que, ao mesmo tempo, distingue o sofisticado e elegante do grosseiro e feliz. É justamente aí que entra Driss, a quem Philippe tenta, em vão, ensinar o significado daquela maneira peculiar de fazer música (peculiar, visto que toda música instrumental tornou-se denotativa de peculiaridade no mundo "pop"). Driss, desinteressado, prefere ensinar Philippe a conhecer a "alegria da vida" à sua maneira, apresentando-lhe, ao final da festa, sua própria música, o R & B dos Estados Unidos. Para isso, no dispositivo sonoro portátil, coloca para tocar "Boogie Wonderland" do grupo Earth, Wind & Fire. Logo, a festa, que até então transcorrera monótona como o enterro de um defunto ao som da música erudita, torna-se finalmente um momento de sincera alegria, onde os mesmos respeitáveis convidados, dantes contidos e solenes, põe-se a dançar alegremente, como se tivessem descoberto no "pop" a saída álacre para a prisão desditosa do erudito.

Música erudita, chatice e infelicidade: a reprodução de um clichê na cultura "pop" 
 


Infelizmente, tratar a música erudita como algo "chato" já se tornou um clichê comum na cultura "pop" em geral. No cinema não é diferente: o lugar-comum é retratá-la como uma forma de arte anacrônica, deslocada no tempo, que só sobrevive graças ao apelo à tradição, o que fica manifestamente representado no seu público formado por idosos, seres mumificados, todos a esperar a hora da morte. A música erudita é também arte da elite econômica, como se pode ver, por exemplo, em Titanic (1997), de James Cameron, onde o convés do navio separa as classes abastadas - apreciadoras de música erudita em ambientes distintos e elegantes, porém frios e infelizes -, da ralé dos andares de baixo, suja e maltrapilha, mas indiscutivelmente mais feliz dançando ao som de animadas composições populares. Para o clichê antimúsica erudita que se difundiu na cultura "pop", é impossível ouvir compositores como Bach, Brahms, Beethoven, Mozart, Mussorgsky, Tchaikovsky, Barber, Elgar, Chopin, Wagner, Brouwer, Villa-Lobos et coetera e sentir algum prazer. Afinal, música erudita é "música de velho", é "coisa chata".  

Esse pensamento, que se difunde à medida que aumenta a quantidade de vezes que o clichê é reproduzido, é pernicioso por aprofundar o distanciamento que existe entre as novas gerações de ouvintes e a música erudita, que, mesmo sendo "clássica", não tem merecido o apreço senão de um nicho cada vez mais reduzido de musicólogos e estudantes de  música. O clichê antimúsica erudita é ainda mais grave se tomarmos em consideração a realidade do sistema educacional brasileiro, o qual é deficiente  em muitos aspectos, incluindo o artístico. Dessa maneira, excetuados aqueles poucos que conseguiram estudar em conservatórios, ou mesmo custearam do próprio bolso aulas particulares de música, a maioria do povo brasileiro é composta por analfabetos musicais, o que, se não impede, dificulta a assimilação auditiva de melodias, harmonias, ritmos, timbres, formas e texturas que fujam ao padrão introdução-refrão-solo-refrão do "pop". E "analfabeto musical" não é somente alguém que "não toca um instrumento" ou não teve "instrução formal" na música (eu já conheci vários instrumentistas completamente analfabetos), mas é sobretudo alguém que carece de "cultura musical", alguém de audição limitada e grosseira, que se nega a ouvir qualquer coisa que não tenha uma letra a ser cantada ou uma padronagem enquadrável no seu estilo favorito, isto é, àquele ao qual sua audição pauperizada habituou-se. Um analfabeto musical é um ser dotado de um cabedal cultural pobríssimo e por princípio intolerante, inapto, portanto, a compreender com profundidade a arte qual uma manifestação da beleza humana.      

Logicamente, o filme "Intocáveis" apenas se valeu de um clichê correntio. Nada inovou. Foi convencional. E neste reside o seu grande ponto fraco: trata-se de mais uma comédia dramática previsível como qualquer outra das que já foram milhares de vezes filmadas em Holywood (apesar de que, por se tratar de um filme francês, a sobriedade dos europeus pesou, o que me parece ter evitado que a obra caísse num dramalhão modorrento e forçado, como o que os estadunidenses adoram produzir diante de um roteiro que envolva personagens vitimadas por acidentes trágicos).

O sucesso de bilheteria estrondoso que a película dos diretores Nakache e Toledano alcançou em todo o mundo só reforça que foram competentes em situar na França os clichês a que o grande público do cinema acostumou-se a ver ambientados nos Estados Unidos da América. "Intocáveis" é um bom blockbuster, sem dúvida, e vai com certeza emocionar a namorada. Enquanto arte cinematográfica, todavia, não vai muito além disso.

5 comentários:

  1. Caro Rafael, seu post atraiu minha atenção porque estou iniciando estudos nessa área de música e sociedade. Concordo com você em muitos pontos, apesar de não ter visto o filme, e nos que discordo acredito que seja devido a alguns itens musicológicos que gostaria de posteriormente compartilhar com você. De qualquer maneira parabéns por puxar a questão; estou assustado pois ela não está entre os debates principais dos músicos.

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    1. Olá Pedro. Como o texto em comento consta da seção do blog Metamorfose do Mal onde publico minhas críticas de cinema, peço licença para recomendar que vejas o filme, já que a referência ao clichê tomou por base a análise da película.
      Desde já, no entanto, agradeço a tua visita e o comentário respeitoso. É uma satisfação contar com leitores engajados nos estudos relacionados ao tema da música e suas implicações na sociedade, tema pouco debatido, como acertadamente observaste, mesmo entre os músicos. Sê sempre bem-vindo ao blog.

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  2. Isso é debatido sim. O problema é que muitos insistem em não aceitar que a sua "opinião" na verdade é baseada em preconceitos. Não é algo do tipo : "vc não conhece o Earth Wind and Fire?Ouve então, também é legal. Mas o que acontece é o seguinte:" Credo, vc ouve isso?Larga disso que existe coisa melhor nesse mundo! Coisa de velho isso, de gente elitizada e chata.
    Eu sofro com esses estereótipos. Faço faculdade de música e praticamente 90% das pessoas que estudam no meu curso são "músicos populares". Eu ouço todo o tipo de comentário ignorante sobre música erudita. E pasmem, num curso de música. Raras pessoas lá estudaram um mínimo sequer para falar que não gostam, conhecem apenas o senso comum: nona sinfonia, For Elise ( a do caminhão do gás), é tudo muito caricato como no filme. É algo do tipo: olha só, eu toco música que não é elitizada, de gente que não estudou em conservatório e não toca em salas de concerto. Para eles é algo morto e enterrado, que não precisa ser mais estudado. Se analisarmos a bossa nova por exemplo, nunca foi a música do "povo brasileiro", e é tão estranha à maioria das pessoas quanto uma valsa. As letras e a harmonia não são algo que qualquer pessoa entenda e saia cantarolando por aí. Negligenciar algo que não conhece só fabrica ignorantes, e o filme passa a ideia também de que Driss não poderia achar legal o quarteto de cordas e o Earth Wind and Fire, separando cada vez mais as coisas.

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    1. Bruna, o teu comentário foi, além de muito bem escrito, um depoimento sincero e emocionante. É lamentável, mas a descrição que fizeste do academia musical é precisa. De fato, o ouvinte de música erudita encontra-se no rodamoinho das acusações de elitismo, quando não diante da ignorância generalizada quanto a essa importante manifestação cultural da humanidade. O que é injusto, haja vista que boa parte dos concertos de música erudita no Brasil tem ingressos subsidiados, de tal maneira que o propalado elitismo do estilo não se sustenta. A verdade é que falta menos oportunidade de ir ao concerto que propriamente EDUCAÇÃO MUSICAL para a compreensão do gênero (e, por conseguinte, despertar o interesse do ouvinte). No teu caso, considerando que és musicista, a situação agrava-se, pois o artista aquele que opta pela música erudita precisa empenhar um esforço intelectual supremo, muita vez ignorado pelo público e, pior, pelos próprios condiscípulos estudantes de música. A situação só piora quando blockbusters como o filme que abordei difundem ainda mais esta ideia estereotípica vulgar e equivocada que associa a TRISTEZA DE VELÓRIO à música erudita e a ALEGRIA SINCERA à música pop. Tais produtos só contribuem para diminuir ainda mais o interesse do público pela música erudita. Que bom, portanto, ler teu comentário. Fiquei muito lisonjeado que tenhas dedicado um pouquinho do teu tempo a comentar um texto de minha autoria. É maravilhoso saber que uma mulher tão culta e inteligente esteja a prestigiar o meu trabalho na crítica de cultura. Sê sempre bem-vinda ao blogue!

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  3. Eu achei o seu comentário dotado de um intelectualismo cult, é uma análise válida, entretanto alguns filmes surgem com a proposta de entreter, e acho que esse é o caso deste filme, infelizmente em relação a música clássica, o filme trouxe a tona o que de fato é realidade, a música erudita em sua maior parte é sim elitista e pouco popular na juventude, e pra mim o clichê do filme se trata da realidade, e por isso me diverti muito assistindo e achei que ele cumpriu o seu proposito, afinal "a arte imita a vida real ou a vida real imita a arte"?

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