terça-feira, 25 de dezembro de 2012

EU TE DAREI A LUA, MARY, PORQUE EU TE AMO: o amor verdadeiro em "A Felicidade Não Se Compra", de Frank Capra.


What is it you want, Mary? What do you want?
You want the moon?
Just say the word and I'll throw a lasso around it and pull it down.
Hey. That's a pretty good idea.
I'll give you the moon, Mary.
George Bailey in: "It's a Wondeful Life" (1946).
 
Um Natal solitário

O Natal é um dos períodos mais encantadores do ano. É nele que o ocidente externa vários dos seus rituais oriundos da mais longeva tradição cultural. Trata-se de uma festa cristã por excelência, mas nem por isso os que não se deixam guiar por nenhuma espécie de credo religioso deixam de comemorá-la. Afinal, a celebração do Natal é símbolo de uma determinada cultura - e todos estamos imersos num dado contexto cultural. Ignorar a cultura é ignorar um dos elementos mais importantes da vida. E o Natal é isto: é uma tradição cultural que não só estimula a convivência em famílias - uma das instituições principais em que se encontra nucleada a sociedade -, como também, ainda que nem sempre de maneira genuinamente sincera, alimenta algum grau de esperança nas pessoas, de que a vida possa ter algum sentido. E esse sentimento (de esperança na humanidade), seja qual for seu móvel, religioso ou não, é sobretudo relevante, para falar com Norman Mailer, no grande vazio em que vivemos absortos.   

Eu gosto muito do Natal. É a minha época favorita do ano. Mas, ao contrário, do que possa parecer, não pelas razões óbvias que animam a maioria das pessoas: a tradicional "troca de presentes", algo que satisfaça o desejo consumista de ganhar um presente legal, algo de que possa jactar-se ao longo do ano. Isso porque fui criado numa família atípica (sei-o bem disso hoje), para a qual o ritual de "troca de presentes" nunca teve muito significado. Se existiu, durou durante breve momentos da tenra infância. Depois, cessou. Tampouco vivi o tradicional ritual das "reuniões em família", onde é comum a parentela reencontrar-se, na tentativa de avivar laços de amizade e companheirismo que (presume-se) a cotidianidade dos muitos afazeres não permite. O motivo é que meus parentes moravam (como ainda moram) em outras cidades, em outros Estados. Era impossível reunir-se, portanto. No Natal, eu estava só.

Concertos de Natal

A atriz Donna Reed (1921-1986), intérprete de Mary Hatch Bailey, uma das personages femininas mais famosas da história do cinema.
Essas circunstâncias peculiares da minha biografia, que poderiam afigurar-se como causas desencadeadoras de trauma infantil, tiveram, entretanto, o condão de impulsionar o meu amadurecimento intelectual precoce. Eu me sentia cindido entre dois mundos, tal qual o jovem Sinclair, protagonista de um dos romances mais importantes da minha vida, Demian (1919), do alemão Herman Hesse:

Es wurde num alles anders. Die Kindheit fiel um mich her in Trümmer. (...) Eine Ernüchterung verfälschte und verblaβte mir die gewohnten Gefühle und Freuden, der Garten war ohne Duft, der Wald lockte nicht, die Welt stand um mich her wie ein Ausverkauft alter Sachen, fad und reizlos, die Bücher waren Papier, die Musik war ein Geräusch. So fällt um einen herbstlichen Baum her das Laub, er fühlt es nicht, Regen rinnt an ihm herab, oder Sonne, oder Frost, und in ihm zieht das Leben sich langsam ins Engste und Innerste zurück. Er stirbt nicht. Er wartet. [1]  

Como eu não tinha assunto para tratar com os outros garotos da minha idade, os quais normalmente estavam a chafurdar na conhecida barbárie futebolística brasileira, onde o torcedor fanático projeta-se como um guerreiro  de um ente mítico chamado "clube de futebol", para o qual a vitória do time autoriza toda sorte de achincalhe vulgar, nos meus "natais solitários" eu me refugiava nos livros. No fundo, eu sempre senti que, quem tem como amigos Herman Hesse, Thomas Mann, Fiódor M. Dostoiévski, Machado de Assis, William Faulkner, Paul Celan, Honoré de Balzac, Georg Trakl, Antero de Quental etc., não precisava de mais ninguém (hoje, mais maduro, vejo que isso não é de todo saudável). Pois a leitura sempre foi para mim antes de tudo um exercício de diálogo. Eu não leio; converso com o autor. A cada livro, eis um novo conselho. E ter como tutores alguns dos homens mais inteligentes e sensíveis que já pisaram sobre a face da terra é um privilégio para poucos (os poucos que se aventuram a ler).

Mas no meu "Natal solitário" o que eu mais gostava mesmo de fazer era tocar. Com a casa vazia, os parentes distantes o suficiente para não ter de presenciar aquelas típicas reuniões familiares cheias de diálogos constrangedores, onde estranhos emulam alguma afinidade que não seja meramente sanguínea, o silêncio imperava. Aí eu intuia que se formava o cenário perfeito para a depurada audição do músico. Pegava, então, meu violão, minhas partituras e tocava. Tocava muito. Muito mesmo. Horas e horas, com todo o coração. Não via o tempo passar durante os meus "concertos". Gostava de tocar especialmente a música erudita antiga, já que, no estudo do meu instrumento no conservatório, sempre me inclinei para a formação de um repertório fundado no renascentismo inglês (não sem razão Julian Bream é meu violonista favorito). Mas também me agradava tocar peças barrocas, pois Bach sempre foi meu compositor favorito, além de, no fundo, ser o grande "pai" de todo apaixonado por música erudita (meu caso). E assim eram os meus natais mais felizes. Porque a música sempre foi uma das minhas principais fontes de felicidade.
    
Um Natal inesquecível no cineclube

Mary Hatch na cena em que reencontra George, seu amor de infância: paixão à primeira vista.

Esse meu ritual idiossincrático de celebração natalina durou até aos meus dezesseis anos. Foi quando, então, entusiasmado pela descoberta do "cinema de arte", passei a frequentar um cineclube da cidade. À época, eu era sobretudo influenciado pelo meu professor de filosofia no colégio, um crítico de cinema que dizia que na "sétima arte" havia muito que um filósofo poderia descobrir como campo em potencial de elucubrações. Como eu sempre fui curioso, decidi averiguar a pista que o professor lançava. E o cineclube foi o rastro que segui. 

Cuidava-se de um projeto de alto nível, realizado num auditório confortável de um grande prédio da cidade. Era mantido por uma operadora de telefonia móvel, que mui provavelmente queria estimular a cultura como parte da "função social da empresa" no mercado capitalista. O cineclube funcionava assim: exibia-se um filme, ao final do qual se seguia uma discussão entre os presentes sobre as interpretações multifárias da película, tudo sob a coordenação de um mediador - um conhecido crítico de cinema da cidade. Eu me recordo que, dentre os que frequentavam o cineclube regularmente, eu era o mais novo. Graças a esse espaço, eu pude conhecer o cinema de Krzysztof Kieslowki, Ingmar Bargman, Stanley Kubrick, Andrei Tarkovski, John Cassavetes, Akira Kurosawa, entre tantos outros grandes nomes. Foi um período muito rico da minha vida, de grande crescimento espiritual. É verdade que eu nunca falava nada nos debates que ocorriam no auditório do cineclube (conhecia muito pouco sobre cinema, não tinha gabarito), mas ouvia com atenção todas as análises, de ângulos de câmeras a reflexões filosóficas sobre as tramas. Nada passava despercebido. E "saber ouvir" o que gente de alto nível cultural diz ou escreve foi (e continua sendo!) uma das minhas maiores virtudes.

Pois foi esse cineclube que mudou para sempre a minha rotina natalina de concertos musicais. Foi graças a ele que, próximo ao Natal de 2001, num dos últimos debates ocorridos no cineclube (o projeto seria cancelado tempos depois, sob avaliação da empresa de que não valia a pena manter uma iniciativa que atraía tão pouco público, sendo mais rentável para a marca investir em trios elétricos no carnaval), assisti a um dos filmes mais lindos de toda a minha vida: "A Felicidade Não Se Compra", de Frank Capra. Ainda hoje, num suspiro, de chofre, ponho-me a recordar o quão grande foi a minha sensação de felicidade ao ver aquela película. Aquele mês de dezembro foi inesquecível. Tudo graças ao filme de Capra.

O céu são os outros

Mary Hatch e George Bailey.

Naquela época eu não sabia, mas aprendi com os críticos do cineclube que "A Felicidade Não Se Compra" é um dos baluartes do cinema nos Estados Unidos, onde é considerado de exibição obrigatória na época natalina. A história gira em torno de George Bailey (James Stewart, em atuação memorável!), um homem nascido e criado numa cidadezinha do interior dos Estados Unidos chamada Bedford Falls, que, desde a infância, acalenta o sonho de viajar pelo mundo, mas, por uma série de vicissitudes, acaba nunca deixando a cidade. Na véspera do Natal, pressionado pelo fracasso nos negócios, ameaçado de ir para a cadeia pelo ganancioso sr. Henry Potter (Lionel Barrymore), o homem mais rico de toda a cidade, Bailey vê-se desesperado e deprimido, inclinando-se ao suicídio. É quando Deus envia seu anjo da guarda, o atrapalhado Clarence Odbody (Henry Travelers), para dissuadi-lo da ideia fatal. Clarence, então, mostra a George Bailey uma realidade alternativa, onde ele não existe, e como a sua inexistência afetaria a vida das pessoas em Bedford Falls.

O filme, cujo título original It's a Wonderful Life (É uma vida maravilhosa, em tradução livre) é por certo inferior ao recebido no Brasil ("A Felicidade Não Se Compra" é expressão de muito mais elegância poética), revela bem o otimismo com que seu diretor, Frank Capra, buscou conduzir a película. Esse otimismo era próprio do período, já que o filme foi rodado em 1946, num momento em que os Estados Unidos acabavam de sair vitoriosos do esforço de guerra. Curiosamente, o filme, que é hoje reconhecidamente uma obra-prima, foi um fracasso de bilheteria à época do seu lançamento, o que só corrobora a tese de que, muita vez, o grande público demora a aperceber-se das qualidade artísticas de uma obra cinematográfica.

Debruçando-me sobre uma possível interpretação do filme, noto quão bela é a mensagem dessa tocante fábula natalina, de sua declaração de amor à vida, onde mesmo o mais, aparentemente, insignificante dos homens serve a um propósito maior, que é o de tocar tantas outras vidas - vidas estas que não seriam decerto as mesmas acaso tivessem sido privadas do convívio com o próximo. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, em frase famosa, repetida à exaustão, ainda que a maioria não a compreenda no contexto do existencialismo em que foi proposta, sentenciou que "O inferno são os outros". Pois bem. Guardadas as devidas proporções, não me parece incorreto dizer que, na visão otimista do pós-Guerra do diretor Frank Capra, "o céu são os outros". E essa talvez seja a mais bela das mensagens que alguém poderia compreender como parte da essência do Natal: longe de ímpetos consumistas por presentes, vaidades tolas, egoísmos vãos, precisamos mesmo é de afeto genuíno, de carinho sincero; precisamos uns dos outros. No Natal, precisamos amarmo-nos uns aos outros, pois devemos lembrar que "quem tem amigos nunca é um fracasso".

Em busca do amor de Mary Hatch

 
Disse acima que "A Felicidade Não Se Compra" mudou minha rotina natalina. Pois bem. De modo a retomar essa raciocínio, penso que o dizer não é exagero, já que, se antes eu me dedicava ao violão, hoje, mais importante até do que a música, é cumprir meu "eterno ritual" de assistir ao filme. No dia de Natal, rever "A Felicidade Não Se Compra" é a minha mais adorável obrigação. Mesmo quando estou a passar o Natal fora da cidade (às vezes até do País!), eu sempre procuro, de alguma maneira, assistir à obra-prima de Capra. Não somente porque é um dos "filmes da minha vida", mas sobretudo porque é o tipo de filme que só faz sentido assistir quando do período natalino. Isto é, quando, como que por mágica, a vida parece diminuir seu ritmo, acalmando nossos corações acelerados pela azáfama cotidiana, levando-nos a parar, nem que seja um pouquinho, e refletir sobre nós mesmos, sobre nosso egoísmo, sobre o que temos feito para ajudar outras pessoas. Momento raro. E extremamente importante.

No entanto, de todas as influências que "A Felicidade Não Se Compra" poderia ter exercido sobre mim, a mais curiosa delas diz respeito à Mary Hatch (interpretada pela lindíssima Donna Reed) - a esposa de George Bailey na trama. É de uma sensibilidade única a maneira habilidosa com que Capra conduz a direção dos seus atores, de modo a enaltecer no enredo o amor, nascido ainda na infância, entre George e Mary. O amor que existe entre eles é de uma ternura especial, de uma inocência muito rara hoje em dia, como fica evidente na cena em que eles dançam na festa de formatura do irmão de George. É, acima de tudo, um sentimento sincero - sincero como o amor que todos nós gostaríamos de ter um dia na vida.

 O amor não se compra

 
O papel de Mary Hatch na trama não costuma ser muito debatido, até porque a fábula de Capra é sobre a vida em geral, não necessariamente sobre o casamento. No entanto, a cada Natal, a cada vez, portanto, que revejo o filme, mais me emociona a beleza poética da força do amor de George por Mary, como fica evidente na cena em que ele promete dar a lua para ela. Ou, ainda, na constatação derradeira de George de que o amor de Mary e de seus filhos era motivo mais do que suficiente para que ele não viesse a dar ouvidos ao vilão Potter, quando afirmou que ele "valia mais morto do que vivo". Talvez Mary Hatch represente uma nova dimensão do otimismo de uma vida conjugal feliz, otimismo tão bem retratado nesse filme por Capra.

O fato é que, neste Natal, assisti mais uma vez ao filme (desta vez em alta definição, numa cópia em blu ray que trouxe dos Estados Unidos, totalmente em inglês!) e quis escrever sobre "A Felicidade Não Se Compra", para enaltecer a personagem Mary Hatch. Certa vez, li num jornal, num artigo de um crítico de cinema tão apaixonado pelo filme quanto eu, que Mary Hatch era a "esposa que todo homem gostaria de ter". Nunca me esqueci disso. E desde a adolescência, quando assisti ao filme pela primeira vez, ainda que inconscientemente, a verdade é que eu sempre procurei ver nas mulheres pelas quais me apaixonei alguma das (muitas) qualidades que encontro na esposa de George Bailey (como é doce o olhar de Mary...). Parafraseando o título de um dos livros do escritor bengali Buddhadeva Bose, a Mary Hatch é o "meu tipo de garota". Porque quando penso no amor dela por George, um dos mais lindos de toda a história do cinema, sobre como ela resistiu bravamente às oscilações intempéricas do marido nos negócios, sempre estando ao seu lado, vencendo o desânimo, não desistindo de George mesmo quando ele se deixara abater a tal ponto que caminhava, amargurado, para o suicídio, penso que tais atitudes constituem o que se pode esperar, no mais lídimo significado da expressão, de um amor verdadeiro. Porque amor, assim como a arte, é resistência. E porque Mary Hatch resistiu a tudo por amor a George, por saber que o amor verdadeiro, tal qual a felicidade, não se compra.               

Notas:
[1] A tradução é de Ivo Barroso: "Depois tudo mudou. A infância se desfez em ruínas. (...) Uma vaga desilusão foi debilitando e esfumando meus sentimentos e minhas alegrias habituais; o jardim já não tinha perfume, o bosque não mais me atraia, o mundo se estendia a meu redor como um saldo de trastes velhos, insípido e desencantado; os livros eram papel; a música, ruído. Exatamente como a árvore do outono ao perder suas folhas que lhe caem ao redor, sem senti-lo e quando a chuva, a geada e o sol lhe resvalam pelo tronco, a medida que a vida se retira para o mais íntimo e recôndito de si mesma. Não morre. Espera." 

REFERÊNCIAS

HESSE, Herman. Demian: Die Geschichte von Emil Sinclairs Jugend. Text und Kommentar. Heribert Kuhn Kommentator. Taschenbuch. Auflage 7. Berlin: Suhrkamp Verlag. 2000, 240 p. (Suhrkamp BasisBibliothek).
HESSE, Herman. Demian - Livro vira-vira 2. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. 154 p. (Coleção Saraiva Vira-Vira 2 livros em 1).

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