domingo, 7 de outubro de 2012

O INTELECTUAL DOS EXTREMOS: uma homenagem a Eric Hobsbawm (1917-2012)




O estudo da História na perspectiva crítica de Dray e Gadamer: contextualizando a historiografia de Hobsbawm
 
Vivi a maior parte do século XX,
devo acrescentar que não sofri provações pessoais.
Lembro-o apenas como o século mais terrível da história.
Isaiah Berlin (1909-1997), filósofo britânico.

Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo,
sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.
Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem,
tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio.
Eric Hobsbawm (1917-2012), historiador britânico.


A palavra “história” soa familiar a qualquer pessoa. Polissêmica, usamo-la, em regra, desde um vocabulário leigo – que remete ora à produção ficcional dos escritores (“escrever histórias”), ora às narrações orais que são transmitidas entre as gerações (“contar histórias”), ora às trivialidades do cotidiano, muita vez dotadas de caráter inverossímil (“deixa de história”). Quando, entretanto, alguém pretende usar o termo na sua acepção científica, a discussão deve necessariamente abandonar o campo da polissemia idiomática e avançar de conformidade com os rigores do método científico.
Ocorre que a conceituação da “História”, enquanto campo de pesquisa das ciências humanas, não pode ignorar o duplo sentido filosófico a ela subjacente: diz-se haver história tanto no curso causal dos fatos que se sucedem uns aos outros numa ordenada e linear relação espaço-tempo (cronológica) quanto na ação do pesquisador que dela se vale para definir o objeto de sua investigação científica. Historiadores, portanto, são cientistas que se apropriam dos fatos ocorridos no tempo, a fim de estudá-los, sistematizando-os, interpretando-os.
A definição do mister do historiador que propus acima não é de aceitação pacífica. Com efeito, é preciso considerar os teóricos que propugnam pelo “distanciamento científico”. Defendem tais autores que a História restringe-se a uma mera exposição de fatos passados. Sua missão é estipular a cadeia causal dos acontecimentos, registrando-os minudentemente. E só. Não competiria ao historiador, nessa ordem de pensamento, interpretar. A busca de explicações dar-se-ia noutros campos da ciências humanas – nunca no da História.  Por isso William Dray (1996, p. 14) afirmou que “Em verdade, os próprios historiadores preferem, por vezes, adotar essa linha a assumir responsabilidade pela maneira como apresentam explicações.”
A crítica de Dray é válida e aplica-se a um pensamento científico, hoje em declínio, que restringe estranhamente a missão do historiador a de mero subscritor do passado. Negando-lhe a ingerência reflexiva, está-se a estipular uma inaceitável limitação da atividade intelectual, além de ignorar o estado atual do pensamento epistemológico, a denotar a impossibilidade de que o historiador – como, de resto, qualquer cientista – possa vir a atingir uma objetividade absoluta na sua pesquisa. É impossivel a alheação completa do privilégio moderno da tomada de uma consciência histórica nas ciências humanas – isto é, a consciência de estar-se limitado inexoravelmente pela história. Como afirma Hans-Georg Gadamer (1999),
O aparecimento de uma tomada de consciência histórica constitui provavelmente a mais importante revolução pela qual passamos desde o início da época moderna. O seu alcance espiritual provavelmente ultrapassa aquele que reconhecemos nas aplicações das ciências das ciências da natureza, que tão visivelmente transformaram a face de nosso planeta. A consciência histórica que caracteriza o homem contemporâneo é um privilégio, talvez mesmo um fardo que jamais se impôs a nenhuma geração anterior.
Postas as palavras do filósofo alemão, parece-me crível considerar que, dentre os maiores intelectuais do século XX, ninguém carregou o fardo da tomada de consciência histórica tão corajosamente quanto o historiador britânico Eric Hobsbawm.

Historiando a própria história: o pensamento de Hobsbawm na era das eras e dos extremos

Filho de pai inglês e mãe austríaca, Hobsbawm nasceu em Alexandria, Egito, mas viveu quase toda sua vida na Europa do pré e do pós-Guerra. Viu de perto, em 1933, a ascensão de Adolf Hitler ao poder proporcionalmente ao ocaso da República de Weimar na Alemanha. Era filho de judeus, mas suas posições políticas eram mesmo de esquerda. Ainda cedo, aprofundou-se no estudo das obras do filósofo alemão Karl Marx. Em 1936, iniciou sua militância, filiando-se ao Partido Comunista inglês.  

Hobsbawm nunca escondeu a influência das suas convicções marxistas na composição de sua obra. Pois foi justamente esse desejo de estudar a história desde a perspectiva da classe trabalhadora que o impulsionou a escrever a sua conhecida trilogia sobre “o longo século XIX”: Era das Revoluções (1789-1848), Era do Capital (1848-1875) e Era dos Impérios (1875-1914), publicados, respectivamente, em 1962, 1975 e 1987. Nessas obras, já era possível notar a capacidade intelectual extraordinária que o tornaria insigne: clareza da escrita, aliada a uma profunda erudição, fizeram com que os “livros das eras” se tornassem referência obrigatória no estudo da História moderna.
Porém, foi com a publicação, em 1994, de “Era dos Extremos” que o historiador deixou o seleto circulo acadêmico, no qual já era respeitadíssimo, para tornar-se um escritor popular junto ao público leigo – algo raríssimo em se tratando de intelectuais.
Acredito que muito da popularidade experimentada por Hobsbawm deve-se não apenas à sua erudição enquanto pesquisador, mas também à franqueza dos propósitos que sempre animaram o historiador britânico. A esse respeito, já no prefácio de “A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991” (1995, p. 7), escreveu:
Não é possível escrever a história do século XX como a de qualquer outra época, quando mais não fosse porque ninguém pode escrever sobre seu próprio tempo de vida como pode (e deve) fazer em relação a uma época conhecida apenas de fora, em segunda ou terceira mão, por intermédio de fontes da época ou obras de historiadores posteriores. Meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte de meu tempo de vida – do início da adolescência até hoje – tenho tido consciência dos assuntos públicos, ou seja, acumulei opiniões e preconceitos sobre a época, mais como contemporâneo que como estudioso.

Vivendo intensamente a “era dos extremos”, tendo presenciado dois conflitos bélicos mundiais que arrasaram boa parte do continente europeu, Hobsbawm tinha um particular interesse em discutir a guerra. Mas não de qualquer maneira. Como historiador rigoroso que era, Hobsbawm propunha-se a questionar a natureza beligerante do século XX, como revelou em O novo século: entrevista a Antonio Polito (2009):
Considero mais relevante analisar a maneira pela qual a natureza geral da guerra e da paz mudou no final do século XX. A natureza geral da guerra é uma questão mais relevante do que suas razões específicas. (...) O que mais me interessa saber é: de que modo a guerra mudou? Tanto no sentido político como no tecnológico. Três questões me ocorrem, e tentarei responder a todas. Primeiro, ainda é possível haver uma guerra entre as grandes potências? A resposta é negativa, pelo menos enquanto os Estados unidos continuarem sendo a única superpotência.(...) Em segundo lugar, ainda é possível uma guerra nuclear? De um lado, a escassa probabilidade de uma guerra mundial torna também menos provável um conflito nuclear. No entanto, o emprego de armas nucleares em uma guerra é, na minha opinião, possível e nada improvável, pois a tecnologia vem ampliando sem cessar a disponibilidade dessas armas, permitindo que sejam produzidas e transportadas com mais facilidade. Portanto, a eliminação do risco de uma guerra mundial não exclui o risco de conflitos nos quais poderiam ser usadas armas nucleares. Terceiro, são ainda possíveis as guerras mais convencionais entre os Estados, tal como as que estamos acostumados? A resposta é que elas nunca cessaram, exceto naquelas áreas em que as duas grandes superpotências se defrontaram diretamente e, portanto, se empenharam ao máximo para evitar uma catástrofe nuclear. (...) Portanto, é grande a possibilidade de mais guerras.
Hobsbawm teve, ainda, o mérito de ser um pensador assumidamente marxista que, dada a qualidade de sua obra, conseguia ser lido para além dos preconceitos típicos das convicções mesquinhas – não raro utilizadas para desmerecer o pensamento de alguém menos por razões de crítica acadêmica que de picuinhas político-partidárias ou ranços ideológicos empedernecidos. Hobsbawm, assim, nunca abandonou o estudo do pensamento histórico-metodológico desenvolvido por Marx, mesmo após a derrocada do regime socialista soviético. Manteve-se fiel às suas convicções, sem negar, contudo, que também o pensamento marxista precisava submeter-se à crítica, até para proporcionar a atualização e a revalorização das ideias do filósofo alemão.  Isso fica claro em Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011 (2011):
Qual é a relevância de Marx no século XXI? O modelo de socialismo ao estilo soviético — até agora a única tentativa de construir uma economia socialista — não existe mais. Por outro lado, verificou-se um avanço imenso e acelerado da globalização e da pura e simples capacidade de geração de riqueza por parte dos seres humanos. Isso diminuiu o poder e o âmbito da ação econômica e social por parte dos Estados-nações e, portanto, das políticas clássicas dos movimentos social-democratas, que se baseavam primordialmente em pressionar os governos nacionais em favor de reformas. Em vista do predomínio do fundamentalismo de mercado, a combinação de globalização e riqueza gerou também uma extrema desigualdade econômica dentro dos países e entre regiões, e devolveu o elemento de catástrofe ao ritmo cíclico básico da economia capitalista, incluindo a desordem que se tornou a mais grave crise mundial desde a década de 1930.
(...)
Assim, como devemos ver Karl Marx hoje? Como um pensador para toda a humanidade e não somente para uma parte dela? Claro que sim. Como filósofo? Como analista econômico? Como um dos pais da moderna ciência social e guia para o entendimento da história humana? Sim, porém o ponto que Attali sublinhou corretamente é a abrangência universal de seu pensamento. Não se trata de um pensamento “interdisciplinar” no sentido convencional, mas integra todas as disciplinas. Como escreveu Attali, “antes dele, os filósofos consideraram o homem em sua totalidade, mas ele foi o primeiro a apreender o mundo como um todo que é, ao mesmo tempo, político, econômico, científico e filosófico".

O intelectual que levou a História ao extremo
 
A obra de Eric Hobsbawm não se resume apenas ao contributo significativo que seu brilhantismo acadêmico proporcionou ao estudo da História – especialmente dignificada com a sua quadrilogia das eras. O britânico era, acima e antes de tudo, um homem erudito. Suas preocupações, dessa forma, abrangiam um campo muito vasto de interesses, indo desde a música, com o seu História Social do Jazz (2011), onde abordou o significado histórico da arte musical enquanto movimento de resistência política, até preocupações de caráter filosófico-epistemológico, como nesta passagem em que reflete sobre o vezo da juventude em desprezar o passado e o papel do historiador diante disso: 
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores. (HOBSBAWM, 1995, p. 13).
Eric Hobsbawm faleceu no dia 01 de outubro de 2012 aos 95 anos. Não resistiu a uma pneumonia. Mas a doença que o matou não apagará jamais a pujança de suas ideias. Tampouco se apagará a memória do intelectual engajado nas lutas do seu tempo, do historiador que, fundindo sua própria vida com a história que se propunha a narrar, especialmente na passagem do “longo século XIX” ao “breve século XX”, dava o testemunho inequívoco de que compreendia bem o significado filosófico, apontado por Hans-Georg Gadamer, da tomada de consciência histórica nas ciências humanas. Hobsbawm, ele próprio, foi como o século XX: intenso, combativo, prolífico. Descrevendo guerras, píncaros de conflitos e conceitos complexos da teoria marxista em uma linguagem acessível, Hobsbawm extremou a importância da História para a compreensão da trajetória humana, levando-a a todos os grupos de leitores. Não me parece exagerado, assim, chamá-lo de “o intelectual dos extremos”.
REFERÊNCIAS
DRAY, William H. Filosofia da História. Tradução de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. 159 p.
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Pierre Fruchon (Org.). Tradução Paulo César Duque Estrada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. 71 p.
HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011. Tradução Donaldson M. Garschagen. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 424 p.
______. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução Marcos Santarrita. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 598 p.
______.O novo século: entrevista a Antonio Polito. Tradução Cláudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 176 p. (Companhia de Bolso).





 
 

Um comentário:

  1. Eric Hobsbawn é um teórico do que chamamos História Social Inglesa, uma linha que poderíamos denominar de neo-marxista, ainda que o termo não se adeque completamente a práxis. Autores como Hobsbawn, Edward Palmer Thompson e outros, foram de fundamental importância para pensar os "silêncios" da teoria marxista, esses enquadrar-se-iam no que podemos chamar de marxianos, ou seja, aqueles que refletem sobre os desdobramentos da teoria marxista, sem a rigidez do economicismo, tantas vezes apregoado ao "jovem hegeliano". Interessantíssimo o texto, que fique à posterioridade, como Hobsbawn esteve para o "Breve século XX".

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