O estudo da História na perspectiva crítica de Dray e Gadamer: contextualizando a historiografia de Hobsbawm
Vivi a maior parte do século XX,
devo acrescentar que não sofri provações pessoais.
Lembro-o apenas como o século mais terrível da história.
devo acrescentar que não sofri provações pessoais.
Lembro-o apenas como o século mais terrível da história.
Isaiah Berlin (1909-1997), filósofo britânico.
Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo,
sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.
Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem,
tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio.
sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.
Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem,
tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio.
Eric Hobsbawm (1917-2012), historiador britânico.
A
palavra “história” soa familiar a qualquer pessoa. Polissêmica, usamo-la, em
regra, desde um vocabulário leigo – que remete ora à produção ficcional dos
escritores (“escrever histórias”), ora às narrações orais que são transmitidas
entre as gerações (“contar histórias”), ora às trivialidades do cotidiano,
muita vez dotadas de caráter inverossímil (“deixa de história”). Quando,
entretanto, alguém pretende usar o termo na sua acepção científica, a discussão
deve necessariamente abandonar o campo da polissemia idiomática e avançar
de conformidade com os rigores do método científico.
Ocorre
que a conceituação da “História”, enquanto campo de pesquisa das ciências
humanas, não pode ignorar o duplo sentido filosófico a ela subjacente: diz-se haver
história tanto no curso causal dos fatos que se sucedem uns aos outros numa
ordenada e linear relação espaço-tempo (cronológica) quanto na ação do pesquisador
que dela se vale para definir o objeto de sua investigação científica.
Historiadores, portanto, são cientistas que se apropriam dos fatos ocorridos no
tempo, a fim de estudá-los, sistematizando-os, interpretando-os.
A definição do mister do historiador que propus acima não
é de aceitação pacífica. Com efeito, é preciso considerar os teóricos que propugnam pelo “distanciamento
científico”. Defendem tais autores que a História restringe-se a
uma mera exposição de fatos passados. Sua missão é estipular a cadeia causal dos
acontecimentos, registrando-os minudentemente. E só. Não competiria ao historiador,
nessa ordem de pensamento, interpretar. A busca de explicações dar-se-ia
noutros campos da ciências humanas – nunca no da História. Por isso William Dray (1996, p. 14) afirmou que “Em
verdade, os próprios historiadores preferem, por vezes, adotar essa linha a
assumir responsabilidade pela maneira como apresentam explicações.”
A
crítica de Dray é válida e aplica-se a um pensamento científico, hoje em
declínio, que restringe estranhamente a missão do historiador a de mero
subscritor do passado. Negando-lhe a ingerência reflexiva, está-se a estipular
uma inaceitável limitação da atividade intelectual, além de ignorar o estado
atual do pensamento epistemológico, a denotar a impossibilidade de
que o historiador – como, de resto, qualquer cientista – possa vir a atingir
uma objetividade absoluta na sua pesquisa. É impossivel a alheação completa do
privilégio moderno da tomada de uma consciência histórica nas ciências humanas – isto é, a
consciência de estar-se limitado inexoravelmente pela história. Como afirma Hans-Georg
Gadamer (1999),
O
aparecimento de uma tomada de consciência histórica constitui provavelmente a
mais importante revolução pela qual passamos desde o início da época moderna. O
seu alcance espiritual provavelmente ultrapassa aquele que reconhecemos nas
aplicações das ciências das ciências da natureza, que tão visivelmente
transformaram a face de nosso planeta. A consciência histórica que caracteriza
o homem contemporâneo é um privilégio, talvez mesmo um fardo que jamais se
impôs a nenhuma geração anterior.
Postas
as palavras do filósofo alemão, parece-me crível considerar que, dentre os maiores
intelectuais do século XX, ninguém carregou o fardo da tomada de consciência
histórica tão corajosamente quanto o historiador britânico Eric Hobsbawm.
Historiando a própria história: o pensamento de Hobsbawm na era das eras e dos extremos
Filho de pai inglês e mãe austríaca, Hobsbawm nasceu em Alexandria, Egito, mas viveu quase toda sua vida na Europa do pré e do pós-Guerra. Viu de perto, em 1933, a ascensão de Adolf Hitler ao poder proporcionalmente ao ocaso da República de Weimar na Alemanha. Era filho de judeus, mas suas posições políticas eram mesmo de esquerda. Ainda cedo, aprofundou-se no estudo das obras do filósofo alemão Karl Marx. Em 1936, iniciou sua militância, filiando-se ao Partido Comunista inglês.
Hobsbawm nunca escondeu a influência das suas convicções
marxistas na composição de sua obra. Pois foi justamente esse desejo de estudar
a história desde a perspectiva da classe trabalhadora que o impulsionou a
escrever a sua conhecida trilogia sobre “o longo século XIX”: Era das Revoluções (1789-1848), Era do Capital (1848-1875) e Era dos
Impérios (1875-1914), publicados, respectivamente, em 1962, 1975 e 1987. Nessas obras, já era
possível notar a capacidade intelectual extraordinária que o tornaria insigne: clareza
da escrita, aliada a uma profunda erudição, fizeram com que os “livros das eras”
se tornassem referência obrigatória no estudo da História moderna.
Porém,
foi com a publicação, em 1994, de “Era dos Extremos” que o historiador deixou o
seleto circulo acadêmico, no qual já era respeitadíssimo, para tornar-se um
escritor popular junto ao público leigo – algo raríssimo em se tratando de
intelectuais.
Acredito
que muito da popularidade experimentada por Hobsbawm deve-se não apenas à sua erudição
enquanto pesquisador, mas também à franqueza dos propósitos que sempre animaram
o historiador britânico. A esse respeito, já no prefácio de “A Era dos Extremos:
o breve século XX: 1914-1991” (1995, p. 7), escreveu:
Não é possível escrever a
história do século XX como a de qualquer outra época, quando mais não fosse
porque ninguém pode escrever sobre seu próprio tempo de vida como pode (e deve)
fazer em relação a uma época conhecida apenas de fora, em segunda ou terceira
mão, por intermédio de fontes da época ou obras de historiadores posteriores.
Meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e
durante a maior parte de meu tempo de vida – do início da adolescência até hoje
– tenho tido consciência dos assuntos públicos, ou seja, acumulei opiniões e
preconceitos sobre a época, mais como contemporâneo que como estudioso.
Vivendo
intensamente a “era dos extremos”, tendo presenciado dois conflitos bélicos
mundiais que arrasaram boa parte do continente europeu, Hobsbawm tinha um particular
interesse em discutir a guerra. Mas não de qualquer maneira. Como historiador
rigoroso que era, Hobsbawm propunha-se a questionar a natureza beligerante do
século XX, como revelou em O novo século:
entrevista a Antonio Polito (2009):
Considero
mais relevante analisar a maneira pela qual a natureza geral da guerra e da paz
mudou no final do século XX. A natureza geral da guerra é uma questão mais
relevante do que suas razões específicas. (...)
O que mais me interessa saber é: de que modo a guerra mudou? Tanto no
sentido político como no tecnológico. Três questões me ocorrem, e tentarei
responder a todas. Primeiro, ainda é possível haver uma guerra entre as grandes
potências? A resposta é negativa, pelo menos enquanto os Estados unidos continuarem
sendo a única superpotência.(...) Em segundo lugar, ainda é possível uma guerra
nuclear? De um lado, a escassa probabilidade de uma guerra mundial torna também
menos provável um conflito nuclear. No entanto, o emprego de armas nucleares em
uma guerra é, na minha opinião, possível e nada improvável, pois a tecnologia
vem ampliando sem cessar a disponibilidade dessas armas, permitindo que sejam
produzidas e transportadas com mais facilidade. Portanto, a eliminação do risco
de uma guerra mundial não exclui o risco de conflitos nos quais poderiam ser
usadas armas nucleares. Terceiro, são ainda possíveis as guerras mais
convencionais entre os Estados, tal como as que estamos acostumados? A resposta
é que elas nunca cessaram, exceto naquelas áreas em que as duas grandes
superpotências se defrontaram diretamente e, portanto, se empenharam ao máximo
para evitar uma catástrofe nuclear. (...) Portanto,
é grande a possibilidade de mais guerras.
Hobsbawm
teve, ainda, o mérito de ser um pensador assumidamente marxista que, dada a
qualidade de sua obra, conseguia ser lido para além dos preconceitos típicos das
convicções mesquinhas – não raro utilizadas para desmerecer o pensamento de
alguém menos por razões de crítica acadêmica que de picuinhas político-partidárias
ou ranços ideológicos empedernecidos. Hobsbawm, assim, nunca abandonou o estudo
do pensamento histórico-metodológico desenvolvido por Marx, mesmo após a
derrocada do regime socialista soviético. Manteve-se fiel às suas convicções,
sem negar, contudo, que também o pensamento marxista precisava submeter-se à
crítica, até para proporcionar a atualização e a revalorização das ideias do
filósofo alemão. Isso fica claro em Como mudar o mundo: Marx e o marxismo,
1840-2011 (2011):
Qual
é a relevância de Marx no século XXI? O modelo de socialismo ao estilo
soviético — até agora a única tentativa de construir uma economia socialista —
não existe mais. Por outro lado, verificou-se um avanço imenso e acelerado da
globalização e da pura e simples capacidade de geração de riqueza por parte dos
seres humanos. Isso diminuiu o poder e o âmbito da ação econômica e social por
parte dos Estados-nações e, portanto, das políticas clássicas dos movimentos
social-democratas, que se baseavam primordialmente em pressionar os governos
nacionais em favor de reformas. Em vista do predomínio do fundamentalismo de
mercado, a combinação de globalização e riqueza gerou também uma extrema
desigualdade econômica dentro dos países e entre regiões, e devolveu o elemento
de catástrofe ao ritmo cíclico básico da economia capitalista, incluindo a
desordem que se tornou a mais grave crise mundial desde a década de 1930.
(...)
Assim,
como devemos ver Karl Marx hoje? Como um pensador para toda a humanidade e não
somente para uma parte dela? Claro que sim. Como filósofo? Como analista
econômico? Como um dos pais da moderna ciência social e guia para o
entendimento da história humana? Sim, porém o ponto que Attali sublinhou
corretamente é a abrangência universal de seu pensamento. Não se trata de um
pensamento “interdisciplinar” no sentido convencional, mas integra todas as
disciplinas. Como escreveu Attali, “antes dele, os filósofos consideraram o
homem em sua totalidade, mas ele foi o primeiro a apreender o mundo como um
todo que é, ao mesmo tempo, político, econômico, científico e filosófico".
O intelectual que levou a História ao extremo
A obra de Eric Hobsbawm não se resume apenas ao contributo
significativo que seu brilhantismo acadêmico proporcionou ao estudo da História
– especialmente dignificada com a sua quadrilogia das eras. O britânico era,
acima e antes de tudo, um homem erudito. Suas preocupações, dessa forma, abrangiam
um campo muito vasto de interesses, indo desde a música, com o seu História Social do Jazz (2011), onde
abordou o significado histórico da arte musical enquanto movimento de resistência
política, até preocupações de caráter filosófico-epistemológico, como nesta
passagem em que reflete sobre o vezo da juventude em desprezar o passado e o papel
do historiador diante disso:
A
destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa
experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais
característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje
crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o
passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é
lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim
do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que
simples cronistas, memorialistas e compiladores. (HOBSBAWM, 1995, p. 13).
Eric Hobsbawm faleceu no dia 01 de outubro de 2012 aos 95
anos. Não resistiu a uma pneumonia. Mas a doença que o matou não apagará jamais
a pujança de suas ideias. Tampouco se apagará a memória do intelectual engajado
nas lutas do seu tempo, do historiador que, fundindo sua própria vida com a
história que se propunha a narrar, especialmente na passagem do “longo século
XIX” ao “breve século XX”, dava o testemunho inequívoco de que compreendia bem
o significado filosófico, apontado por Hans-Georg Gadamer, da tomada de consciência histórica nas ciências humanas.
Hobsbawm, ele próprio, foi como o século XX: intenso, combativo, prolífico.
Descrevendo guerras, píncaros de conflitos e conceitos complexos da teoria
marxista em uma linguagem acessível, Hobsbawm extremou a importância da História para a compreensão da trajetória humana, levando-a a todos os grupos de leitores. Não me parece exagerado, assim, chamá-lo de “o intelectual dos extremos”.
REFERÊNCIAS
DRAY,
William H. Filosofia da História. Tradução
de Octanny
Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. 159 p.
GADAMER,
Hans-Georg. O problema da consciência
histórica. Pierre Fruchon (Org.). Tradução Paulo
César Duque Estrada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. 71 p.
HOBSBAWM,
Eric. Como mudar o mundo: Marx e o
marxismo, 1840-2011. Tradução Donaldson M.
Garschagen. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 424 p.
______.
Era dos extremos: o breve século XX:
1914-1991. Tradução Marcos Santarrita. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
598 p.
______.O novo século: entrevista a Antonio Polito. Tradução Cláudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 176 p. (Companhia de Bolso).
Eric Hobsbawn é um teórico do que chamamos História Social Inglesa, uma linha que poderíamos denominar de neo-marxista, ainda que o termo não se adeque completamente a práxis. Autores como Hobsbawn, Edward Palmer Thompson e outros, foram de fundamental importância para pensar os "silêncios" da teoria marxista, esses enquadrar-se-iam no que podemos chamar de marxianos, ou seja, aqueles que refletem sobre os desdobramentos da teoria marxista, sem a rigidez do economicismo, tantas vezes apregoado ao "jovem hegeliano". Interessantíssimo o texto, que fique à posterioridade, como Hobsbawn esteve para o "Breve século XX".
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