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Gabriela Hernández Guerra, estudante mexicana de 22 anos, anuncia no Facebook seu suicídio. |
A morte é tradicionalmente um momento de suprema privacidade. De fato, não conheço ninguém que deseje morrer aos olhos do público, assassinado em frente a um hotel, atropelado durante uma maratona. Mesmo a morte de causas naturais não costuma ser registrada como lembrança. Não tomo partido em nossa sociedade de quem cultive o hábito de fotografar o momento, como se dá com frequência em relação a festas de aniversário ou viagens. E, submetendo-se o fim da existência aos rigores da historiografia, os ritos sociais derredor do ato de morrer serão o mais das vezes de zelo e contristação, pena e recôndito.
Apesar disso, não ignoro que a morte também pode servir de matéria-prima para a exposição. As artes são preponderantes nesse contexto. Não raro, poetas dedicam obras inteiras ao assunto, tomando-a como força motriz criativa. Toda a obra de Augusto dos Anjos vai nessa toada, e o primoroso Morte e vida Severina de João Cabral de Melo Neto trilha idêntico caminho, posto que com propósito literário diferente. O cancioneiro mundial apresenta canções inspiradas pela morte desde os séculos mais distantes. Da prisca Renascença vem, por exemplo, a clássica Tarleton's Ressurection, peça do repertório para alaúde, composta por John Dowland em homenagem ao falecimento de Richard Tarleton, o mais famoso palhaço da Inglaterra no século XVI.
À sua maneira, Joan Didion também se debruçou sobre a morte. No seu livro O ano do pensamento mágico, a escritora estadunidense narra a experiência dolorosa de quem perdeu, de forma súbita, o marido e a filha:
Por se julgar invisível em sua dor, Didion vale-se de sua habilidade literária, para expor, em tom confessional, o desespero de assistir à ruína dos alicerces familiares de sua vida. É uma esposa premida pela solidão vidual; é uma mãe dilacerada com saudades da filha.
Talvez essa pretensa invisibilidade da perda explique a atitude de Gabriela Hernández Guerra, que anunciou numa rede social a própria morte. Inconformada com o término do namoro que mantinha pela internet com o equatoriano Julio, a estudante mexicana de 22 anos suicidou-se. Mas antes fez questão de documentar em foto o ato derradeiro e desesperado, compartilhando-o no Facebook.
No Brasil, caso semelhante aconteceu com Júlia Rebeca, de 17 anos, que anunciou no Twitter o dia da própria morte. A decisão fatídica teria sido motivada pelo vazamento no WhatsApp de um vídeo onde aparecia, juntamente com um rapaz e outra adolescente, em momentos íntimos. Incapaz de suportar a humilhação, a estudante enforcou-se.
São dois casos emblemáticos dos nossos tempos de redes sociais. Não pelo suicídio, que é fato social conhecido e longamente estudado. O que os torna peculiares é a apresentação pública do passamento. Duas jovens, motivadas por razões diversas, convergem para as redes sociais, a anunciar a própria morte, retirando-a do seu recôndito. Diferentemente de Didion, que narrou a dor que se segue à perda de entes queridos, Júlia e Gabriela expuseram com antecedência a própria morte - a perda da própria vida.
O que me interessa nesses casos é notar a consequência da era de superexposição em que vivemos. Mais do que nunca, não basta ter, é preciso exibir. De que adianta ter um carro de luxo se ninguém o souber? De que adianta fazer a viagem sonhada se não se puder noticiar aos seus pares? O desejo de compartilhar não é novo. Sociável, o ser humano quer dialogar. A novidade fica por conta do canal apropriado para o compartilhamento: as redes sociais. Não mais as cartas do passado, tampouco telefonemas, o veículo é público e instantâneo. Público, porque as redes sociais têm o poder de dar a notícia do fato a todos que estejam conectados à internet. Instantâneo, porque ao alcance de um clique no mouse do computador.
E qual o sentido de anunciar no Twitter a data da própria morte ou, pior, compartilhar no Facebook as fotos do próprio suicídio? Para além do sofrimento implícito na mensagem, nota-se o anseio de aplacar o vazio de uma existência ignorada, o desejo mórbido e desesperado de destacar-se, de tornar-se visível. Como num show funesto e sensacionalista, vai-se ao cúmulo de anunciar a própria morte. Só assim não se morre em vão.
Nos tempos líquidos das redes sociais, morrer em vão confunde-se com o anonimato. Nas fotos do casamento não compartilhadas, tanto quanto na morbidez da despedida de um suicida, o temor é o mesmo: ser ignorado, deixado para trás, não despertar reação. A intimidade da morte cede ante o espetáculo da existência, que deve a todo o momento dar publicidade ao existir. Não se trata do co-existir, do existir com o outro. O que se expõe diante do espaço público é o existir individualmente considerado - ainda que em vias de passamento.
Para as gerações que crescem inspiradas pelas redes sociais, não há pena mais grave que a anonimidade. Porque a privacidade perde sua supremacia, a morte sai do seu recôndito social costumeiro. Transformado em espetáculo, o suicídio toma a forma de derradeiro "show" da existência. É preciso compartilhá-lo, é preciso anunciá-lo. Morrer não significa nada sem que os outros saibam.
REFERÊNCIAS
Apesar disso, não ignoro que a morte também pode servir de matéria-prima para a exposição. As artes são preponderantes nesse contexto. Não raro, poetas dedicam obras inteiras ao assunto, tomando-a como força motriz criativa. Toda a obra de Augusto dos Anjos vai nessa toada, e o primoroso Morte e vida Severina de João Cabral de Melo Neto trilha idêntico caminho, posto que com propósito literário diferente. O cancioneiro mundial apresenta canções inspiradas pela morte desde os séculos mais distantes. Da prisca Renascença vem, por exemplo, a clássica Tarleton's Ressurection, peça do repertório para alaúde, composta por John Dowland em homenagem ao falecimento de Richard Tarleton, o mais famoso palhaço da Inglaterra no século XVI.
À sua maneira, Joan Didion também se debruçou sobre a morte. No seu livro O ano do pensamento mágico, a escritora estadunidense narra a experiência dolorosa de quem perdeu, de forma súbita, o marido e a filha:
Quem sofre a perda recente fica com um certo olhar que talvez seja somente reconhecível pelos que já viram aquele mesmo olhar no próprio rosto. Notei isso no meu rosto e agora percebo nos outros. Esse olhar reflete uma enorme vulnerabilidade, é como estar nu e desarmado. É o olhar de quem sai do consultório do oftalmologista com as pupilas dilatadas e encara a luz do dia, ou o olhar de quem usa óculos e tem subitamente que tirá-los. As pessoas que perderam alguém parecem nuas porque se acreditam invisíveis.
Por se julgar invisível em sua dor, Didion vale-se de sua habilidade literária, para expor, em tom confessional, o desespero de assistir à ruína dos alicerces familiares de sua vida. É uma esposa premida pela solidão vidual; é uma mãe dilacerada com saudades da filha.
Talvez essa pretensa invisibilidade da perda explique a atitude de Gabriela Hernández Guerra, que anunciou numa rede social a própria morte. Inconformada com o término do namoro que mantinha pela internet com o equatoriano Julio, a estudante mexicana de 22 anos suicidou-se. Mas antes fez questão de documentar em foto o ato derradeiro e desesperado, compartilhando-o no Facebook.
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A estudante Júlia Rebeca, de 17 anos, que anunciou no Twitter seu suicídio após ser exposta em vídeo íntimo. |
No Brasil, caso semelhante aconteceu com Júlia Rebeca, de 17 anos, que anunciou no Twitter o dia da própria morte. A decisão fatídica teria sido motivada pelo vazamento no WhatsApp de um vídeo onde aparecia, juntamente com um rapaz e outra adolescente, em momentos íntimos. Incapaz de suportar a humilhação, a estudante enforcou-se.
São dois casos emblemáticos dos nossos tempos de redes sociais. Não pelo suicídio, que é fato social conhecido e longamente estudado. O que os torna peculiares é a apresentação pública do passamento. Duas jovens, motivadas por razões diversas, convergem para as redes sociais, a anunciar a própria morte, retirando-a do seu recôndito. Diferentemente de Didion, que narrou a dor que se segue à perda de entes queridos, Júlia e Gabriela expuseram com antecedência a própria morte - a perda da própria vida.
O que me interessa nesses casos é notar a consequência da era de superexposição em que vivemos. Mais do que nunca, não basta ter, é preciso exibir. De que adianta ter um carro de luxo se ninguém o souber? De que adianta fazer a viagem sonhada se não se puder noticiar aos seus pares? O desejo de compartilhar não é novo. Sociável, o ser humano quer dialogar. A novidade fica por conta do canal apropriado para o compartilhamento: as redes sociais. Não mais as cartas do passado, tampouco telefonemas, o veículo é público e instantâneo. Público, porque as redes sociais têm o poder de dar a notícia do fato a todos que estejam conectados à internet. Instantâneo, porque ao alcance de um clique no mouse do computador.
E qual o sentido de anunciar no Twitter a data da própria morte ou, pior, compartilhar no Facebook as fotos do próprio suicídio? Para além do sofrimento implícito na mensagem, nota-se o anseio de aplacar o vazio de uma existência ignorada, o desejo mórbido e desesperado de destacar-se, de tornar-se visível. Como num show funesto e sensacionalista, vai-se ao cúmulo de anunciar a própria morte. Só assim não se morre em vão.
Nos tempos líquidos das redes sociais, morrer em vão confunde-se com o anonimato. Nas fotos do casamento não compartilhadas, tanto quanto na morbidez da despedida de um suicida, o temor é o mesmo: ser ignorado, deixado para trás, não despertar reação. A intimidade da morte cede ante o espetáculo da existência, que deve a todo o momento dar publicidade ao existir. Não se trata do co-existir, do existir com o outro. O que se expõe diante do espaço público é o existir individualmente considerado - ainda que em vias de passamento.
Para as gerações que crescem inspiradas pelas redes sociais, não há pena mais grave que a anonimidade. Porque a privacidade perde sua supremacia, a morte sai do seu recôndito social costumeiro. Transformado em espetáculo, o suicídio toma a forma de derradeiro "show" da existência. É preciso compartilhá-lo, é preciso anunciá-lo. Morrer não significa nada sem que os outros saibam.
REFERÊNCIAS
DIDION, Joan. O ano do pensamento mágico. Tradução Paulo Andrade Lemos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 220 p.