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O escritor Lima Barreto, em 1919, em foto do prontuário médico por ocasião de sua segunda internação no Hospício Nacional dos Alienados. |
(...) os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São de imigrantes italianos, portugueses e outros mais exóticos, são os negros roceiros que teimam em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta sórdida; são copeiros, cocheiros, moços de cavalariça, trabalhadores braçais. No meio disto, muitos com educação, mas que falta de recursos e proteção atira naquela geena social.
Lima Barreto, "Cemitério dos Vivos".
No próximo dia 20 de novembro, comemorar-se-á mais um Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil. Trata-se de uma das mais significativas datas para todos os militantes que lutam, nos mais diversos movimentos sociais, contra o preconceito social. Nesse caso, especialmente o de origem étnica, tal qual se dá em relação ao negro brasileiro.
Desnecessário dizer que o Brasil é racista (admito, não gosto do termo, porque remete a um conceito antropologicamente equivocado de "raça"). O preconceito contra o negro ainda é forte, embora invisível. Disfarça-se em fatos, como aquele que dá conta de que, no Brasil, pobreza tem cor - e ela é escura. A maioria dos pobres no Brasil é da cor preta (brancos pobres existem, mas não tão pobres quanto os negros). Avança pelo campo das instituições republicanas, mediante ações policiais arbitrárias que prendem "preventivamente" lastreados na tez escura da pele. Vai depois à vida privada de uma sociedade violenta e violentada, na qual, sob a tentativa de autodefesa ideológica contra insegurança, é costume estereotipar o homem negro como presumivelmente perigoso ator do mundo criminoso.
Nos termos descritos acima, posso afirmar que o panorama do preconceito contra o negro no Brasil já está bastante identificado - incluindo as suas raízes históricas e sociológicas. E, felizmente, a crença estúpida de que alguém possa ser considerado "superior" ou "inferior" com base na quantidade de melanina em sua pele está a ser paulatinamente debelada em iniciativas que partem ora do Estado, ora da sociedade civil organizada. Parece-me, no entanto, que ainda pouco se discute quanto ao fato de que o Brasil possui poucos escritores negros.
Antes de avançar na explanação do meu pensamento, quero deixar claro o seguinte: sou veementemente contrário a toda e qualquer forma de avaliação do mérito literário pelo fato de o escritor pertencer a tal ou qual cor (o mesmo raciocínio vale para procedência nacional, classe social, sexo etc). A qualidade do trabalho de um autor deve ser avaliada independentemente de sua origem étnica. Não importa se ele é branco ou negro ou pardo ou qualquer outra designação que o valha. Um escritor deve ser julgado de acordo com as suas habilidades literárias tanto quanto um pensador o é pela qualidade de suas ideias. Pois nada há de mais preconceituoso do que premiar o talento de alguém pela cor de pele. No fundo, não é o talento que se premia, mas a conjuntura de pertencer a um determinado grupo social que, por razões as mais variegadas, quer-se prestigiar. É isso o que faz, por exemplo, com que o Nobel de literatura de 1993, dado a Toni Morrisson, seja tão criticado. Muitos críticos entendem-no imerecido do ponto de vista literário, atribuindo-o tão somente ao desejo "politicamente correto" da Academia Sueca em premiar uma "escritora negra".
O fato, no entanto, é que o Brasil possui poucos escritores negros de destaque na literatura nacional. Se olharmos apenas as fotos dos maiores autores brasileiros, seja na prosa ou na poesia, à exceção talvez de Machado de Assis e Cruz e Sousa, chegaremos facilmente à conclusão de que o Brasil é um país majoritariamente formado por brancos. Essa contradição aparente, porém, torna-se explicável à luz da história, cujos olhos atentos não cansam de dardejar mortalmente as ignóbeis teorias racistas.
Assim, ao estudar a historiografia brasileira, aprendemos que os negros, que aqui foram vergonhosamente seviciados durante séculos de escravatura, quase sempre eram analfabetos (por que se haveria de ensinar a ler quem não era "gente", mas mero "objeto" do direito de propriedade alheio?). Mesmo após o fim da escravidão, com a famosa Lei Áurea de 1888, o negro dificilmente podia dedicar-se ao nobre ofício da literatura, em parte porque o acesso à educação não era um direito garantido universalmente, em parte porque, na mais absoluta ausência de direitos trabalhistas, era obrigado a vender sua força de trabalho em condições de labor precarizadas. Esse é um aspecto histórico relevante, na medida em que escrever é uma espécie peculiar de arte cujo desenvolvimento dá-se muito lentamente, a demandar anos e anos de leituras e estudos de idioma. Ou seja, para ser escritor, é preciso dedicar tempo, muito tempo, o mais das vezes sozinho, em bibliotecas, livrarias etc. O negro recém-libertado da escravidão hedionda com certeza não dispunha desse tempo. É algo substancialmente diverso do talento musical. Aí a história é pródiga em exemplos de artistas que, mesmo sem muito estudo "formal" dos seus instrumentos, foram capazes de produzir grandes composições. Que o diga João Pernambuco, imigrante nordestino que, mesmo trabalhando em longas jornadas como ferreiro no Rio de Janeiro, legou uma das mais importantes obras do violão no Brasil, da qual se destaca a lindíssima "Sons de Carrilhões", obra-prima violonística imortalizada na interpretação do inesquecível Dilermando Reis.
O escritor negro esquecido que desafiou o preconceito do seu tempo
Nesse contexto, em que a presença do negro na literatura brasileira aparece timidamente, é que vejo com pesar o esquecimento em que ainda se encontra mergulhado um dos maiores autores do nosso País: o escritor fluminense Afonso Henriques de Lima Barreto.
De fato, o ano de 2012 foi prolífero em efemérides importantes no calendário de comemorações da literatura nacional. Tivemos as justas homenagens ao centenário de nascimento do escritor baiano Jorge Amado, bem como aos 110 anos do natalício do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Mas houve injustiças também. A começar pelo falecimento, quase que totalmente ignorado, de Autran Dourado, passando pelo centenário (não lembrado) de Lúcio Cardoso, chegamos, finalmente, no dia 1 de novembro de 2012, às comemorações dos 90 anos de esquecimento em que se encontra a data da morte de Lima Barreto. E são noventa anos mesmo, a considerar que, quando ele morreu tristemente no dia 1 de novembro de 1922, já estava praticamente esquecido no hospital psiquiátrico em que fora internado para tratar do seu alcoolismo - à época catalogado como uma "doença mental".
Gosto muito de Lima Barreto. Sua obra dialoga com meu espírito de resiliência aos problemas sociais. Nos livros desse autor encontramos uma literatura "militante", digna de um literato que acredita na sua função social. Estamos diante do contista brilhante que não poupa as convenções da República Velha, desatarraxando mordazmente as peças das engrenagens estatais republicanas, já àquela época afundadas na corrupção, no nepotismo, na venalidade do público como se privado fosse e, claro, no racismo velado. Definitivamente, não poderia haver escritor mais atual no nosso País.
Na obra de Lima Barreto, encontramos a descrição irônica do "troca-troca" de favores com que, no início do século XX, buscava-se mascarar a falsa erudição - temática do primoroso conto O homem que sabia javanês (1911). Em O Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), há o ataque ao nacionalismo exacerbado, típico da primeira República. Nesse romance, assistimos à construção de uma personagem (Quaresma) hilária, autor de proezas impagáveis (assembleia para falar Tupi?), autêntico gênio da erudição levada ao extremo ufanista, que chega a beirar o ridículo, como na passagem em que buscava delinear a expressão da "alma nacional":
Lima Barreto é um escritor de muita qualidade. Isso é indiscutível. Mas por que ele permanece, na literatura brasileira, esquecido como o retrato apoplético de um parente bêbado do qual ninguém deseja recordar?
O intelectual negro na República Velha: racismo e alcoolismo na vida de Lima Barreto
Inicialmente, lembro a vida difícil que Lima Barreto levou. Ele era um intelectual negro em uma época em que os negros não costumavam ocupar lugares de destaque no campo da intelectualidade (será que isso mudou muito hoje?). Some-se a isso que era extraordinariamente inteligente e dono de uma erudição genuína, o que devia despertar a inveja de muitos contemporâneos seus "não tão brilhantes" e que, portanto, precisam impor ares de falsos eruditos (isso foi no começo do século XX, repito, quando erudição ainda tinha algum valor social; hodiernamente, todavia, a estultícia foi alçada à condição de "virtude") .
A esse respeito, Lima Barreto escreveu nas Recordações do escrivão Isaías Caminha aquela que é, até hoje, uma das mais belas demonstrações literárias de amor ao conhecimento:
Também temos de considerar as dificuldades financeiras que sustaram precocemente sua formação acadêmica: com o diagnóstico da demência do pai, teve de abandonar a Escola Politécnica no Rio de Janeiro. Cedo se tornou arrimo de família. Para piorar, era um boêmio - e alcoólatra. Por mais de uma vez, foi internado em hospitais psiquiátricos, a fim de tratar sua "doença mental" (diagnóstico da época para o alcoolismo). É desse período que advém o seu Diário do Hospício, só publicado postumamente em 1953, que conta a experiência desesperada de um escritor doente - e já caminhando para a morte - internado no Hospício Nacional dos Alienados, no período compreendido entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de 1920, na cidade do Rio de Janeiro. Essas mesmas experiências de sua vivência no hospital renderiam também um romance inacabado (Cemitério dos Vivos), onde o escritor procurou traduzir sua tragédia pessoal de internamento numa versão ficcionalizada e terrivelmente tocante :
A repetição da farsa 90 anos depois: a injusta condenação de Lima Barreto ao esquecimento
Todos esses detalhes biográficos prestam-se a um mesmo propósito: demonstrar que, na história da literatura brasileira, Lima Barreto experimentou como poucos o gosto amargo da discriminação. Arrisco-me a dizer que ninguém sofreu tanto preconceito quanto ele - por ser negro, por ser pobre, por ser dono de uma erudição verdadeira, por ser crítico da República, por ser inimigo do jornalismo venal dos lobistas encastelados nas redações. Acima de tudo, Lima Barreto fez da literatura uma profissão de fé no combate às injustiças sociais do seu tempo. E pagou um preço caro por isso.
Após toda essa exposição, fica fácil entender o quão injusto é deixar um escritor tão importante, em pleno século XXI, condenado a ser um ilustre desconhecido do leitor brasileiro. Mesmo com toda sua obra em domínio público, é um autor muito pouco lido e estudado. Há até quem o considere "chato", "resmungão"! Mais triste ainda é pensar que, parafraseando o filósofo alemão Karl Marx no seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, a história de vida do escritor fluminense aconteceu como tragédia e está a repetir-se desta vez como farsa: vitimizado duplamente, ora pelo racismo epocal, ora pelo esquecimento hodierno de sua morte trágica, ocorrida no dia 1 de novembro.
Sendo assim, no Dia da Consciência Negra, os 90 anos da morte de Lima Barreto, por tudo o que o escritor representou, seja na história da literatura brasileira, seja na história do preconceito racial no Brasil, é uma data que, indubitavelmente, merecia ser lembrada por todos nós. Quem sabe assim possamos evitar este triste fim de Lima Barreto...
REFERÊNCIA
Desnecessário dizer que o Brasil é racista (admito, não gosto do termo, porque remete a um conceito antropologicamente equivocado de "raça"). O preconceito contra o negro ainda é forte, embora invisível. Disfarça-se em fatos, como aquele que dá conta de que, no Brasil, pobreza tem cor - e ela é escura. A maioria dos pobres no Brasil é da cor preta (brancos pobres existem, mas não tão pobres quanto os negros). Avança pelo campo das instituições republicanas, mediante ações policiais arbitrárias que prendem "preventivamente" lastreados na tez escura da pele. Vai depois à vida privada de uma sociedade violenta e violentada, na qual, sob a tentativa de autodefesa ideológica contra insegurança, é costume estereotipar o homem negro como presumivelmente perigoso ator do mundo criminoso.
Nos termos descritos acima, posso afirmar que o panorama do preconceito contra o negro no Brasil já está bastante identificado - incluindo as suas raízes históricas e sociológicas. E, felizmente, a crença estúpida de que alguém possa ser considerado "superior" ou "inferior" com base na quantidade de melanina em sua pele está a ser paulatinamente debelada em iniciativas que partem ora do Estado, ora da sociedade civil organizada. Parece-me, no entanto, que ainda pouco se discute quanto ao fato de que o Brasil possui poucos escritores negros.
Antes de avançar na explanação do meu pensamento, quero deixar claro o seguinte: sou veementemente contrário a toda e qualquer forma de avaliação do mérito literário pelo fato de o escritor pertencer a tal ou qual cor (o mesmo raciocínio vale para procedência nacional, classe social, sexo etc). A qualidade do trabalho de um autor deve ser avaliada independentemente de sua origem étnica. Não importa se ele é branco ou negro ou pardo ou qualquer outra designação que o valha. Um escritor deve ser julgado de acordo com as suas habilidades literárias tanto quanto um pensador o é pela qualidade de suas ideias. Pois nada há de mais preconceituoso do que premiar o talento de alguém pela cor de pele. No fundo, não é o talento que se premia, mas a conjuntura de pertencer a um determinado grupo social que, por razões as mais variegadas, quer-se prestigiar. É isso o que faz, por exemplo, com que o Nobel de literatura de 1993, dado a Toni Morrisson, seja tão criticado. Muitos críticos entendem-no imerecido do ponto de vista literário, atribuindo-o tão somente ao desejo "politicamente correto" da Academia Sueca em premiar uma "escritora negra".
O fato, no entanto, é que o Brasil possui poucos escritores negros de destaque na literatura nacional. Se olharmos apenas as fotos dos maiores autores brasileiros, seja na prosa ou na poesia, à exceção talvez de Machado de Assis e Cruz e Sousa, chegaremos facilmente à conclusão de que o Brasil é um país majoritariamente formado por brancos. Essa contradição aparente, porém, torna-se explicável à luz da história, cujos olhos atentos não cansam de dardejar mortalmente as ignóbeis teorias racistas.
Assim, ao estudar a historiografia brasileira, aprendemos que os negros, que aqui foram vergonhosamente seviciados durante séculos de escravatura, quase sempre eram analfabetos (por que se haveria de ensinar a ler quem não era "gente", mas mero "objeto" do direito de propriedade alheio?). Mesmo após o fim da escravidão, com a famosa Lei Áurea de 1888, o negro dificilmente podia dedicar-se ao nobre ofício da literatura, em parte porque o acesso à educação não era um direito garantido universalmente, em parte porque, na mais absoluta ausência de direitos trabalhistas, era obrigado a vender sua força de trabalho em condições de labor precarizadas. Esse é um aspecto histórico relevante, na medida em que escrever é uma espécie peculiar de arte cujo desenvolvimento dá-se muito lentamente, a demandar anos e anos de leituras e estudos de idioma. Ou seja, para ser escritor, é preciso dedicar tempo, muito tempo, o mais das vezes sozinho, em bibliotecas, livrarias etc. O negro recém-libertado da escravidão hedionda com certeza não dispunha desse tempo. É algo substancialmente diverso do talento musical. Aí a história é pródiga em exemplos de artistas que, mesmo sem muito estudo "formal" dos seus instrumentos, foram capazes de produzir grandes composições. Que o diga João Pernambuco, imigrante nordestino que, mesmo trabalhando em longas jornadas como ferreiro no Rio de Janeiro, legou uma das mais importantes obras do violão no Brasil, da qual se destaca a lindíssima "Sons de Carrilhões", obra-prima violonística imortalizada na interpretação do inesquecível Dilermando Reis.
O escritor negro esquecido que desafiou o preconceito do seu tempo
Nesse contexto, em que a presença do negro na literatura brasileira aparece timidamente, é que vejo com pesar o esquecimento em que ainda se encontra mergulhado um dos maiores autores do nosso País: o escritor fluminense Afonso Henriques de Lima Barreto.
De fato, o ano de 2012 foi prolífero em efemérides importantes no calendário de comemorações da literatura nacional. Tivemos as justas homenagens ao centenário de nascimento do escritor baiano Jorge Amado, bem como aos 110 anos do natalício do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Mas houve injustiças também. A começar pelo falecimento, quase que totalmente ignorado, de Autran Dourado, passando pelo centenário (não lembrado) de Lúcio Cardoso, chegamos, finalmente, no dia 1 de novembro de 2012, às comemorações dos 90 anos de esquecimento em que se encontra a data da morte de Lima Barreto. E são noventa anos mesmo, a considerar que, quando ele morreu tristemente no dia 1 de novembro de 1922, já estava praticamente esquecido no hospital psiquiátrico em que fora internado para tratar do seu alcoolismo - à época catalogado como uma "doença mental".
Gosto muito de Lima Barreto. Sua obra dialoga com meu espírito de resiliência aos problemas sociais. Nos livros desse autor encontramos uma literatura "militante", digna de um literato que acredita na sua função social. Estamos diante do contista brilhante que não poupa as convenções da República Velha, desatarraxando mordazmente as peças das engrenagens estatais republicanas, já àquela época afundadas na corrupção, no nepotismo, na venalidade do público como se privado fosse e, claro, no racismo velado. Definitivamente, não poderia haver escritor mais atual no nosso País.
Na obra de Lima Barreto, encontramos a descrição irônica do "troca-troca" de favores com que, no início do século XX, buscava-se mascarar a falsa erudição - temática do primoroso conto O homem que sabia javanês (1911). Em O Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), há o ataque ao nacionalismo exacerbado, típico da primeira República. Nesse romance, assistimos à construção de uma personagem (Quaresma) hilária, autor de proezas impagáveis (assembleia para falar Tupi?), autêntico gênio da erudição levada ao extremo ufanista, que chega a beirar o ridículo, como na passagem em que buscava delinear a expressão da "alma nacional":
De
acordo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera muito tempo a meditar qual
seria a expressão poético-musical característica da alma nacional. Consultou
historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza de que era a modinha
acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de
aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da
modinha. Estava nisso tudo a quo, mas
procurou saber quem era o primeiro executor e cantor da cidade e tomou lições
com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo
original de arte. (LIMA BARRETO, 2011, p. 92).
Nas Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), encontramos a ousadia de um romance de estreia que se propunha a desnudar a mesquinhez imperante nos bastidores de um jornal. Lima Barreto optara por inaugurar, desse modo, sua carreira de romancista com uma crítica corajosa à imprensa mediocrizada pelos propósitos venais da notícia nas redações, o mais das vezes subjugada por interesses econômicos e vaidades inúteis. Obviamente, um escritor de tamanha petulância não poderia ficar impune. O jornal Correio da Manhã tratou de cominar a pena: a "ditadura do silêncio".
Marginalizado,
banido e embargado a partir da sua estréia em Recordações do Escrivão
Isaías Caminha, Lima Barreto não é apenas um dos símbolos dos preconceitos que
dominavam nossa sociedade e os salões literários. É talvez a primeira vítima
daquilo que ele próprio designou como "ditadura do silêncio".
Graças
a esta ditadura o escritor foi levado à condição de freqüentador assíduo tanto
da história literária do século 20 como da história do nosso jornalismo. Num
caso como gênio incompreendido, no outro como o primeiro sacrificado por uma
das mais abomináveis e duradouras práticas das nossas redações: a "lista
negra", o Index dos Nomes Proibidos, repertório dos não-existentes, vivos
ou mortos.
[...]
Lima
Barreto poderia ter escolhido outro livro para estrear, tinha pelo menos outros
dois na gaveta. Preferiu algo novo, agressivo, um romance diferente dos
cânones, capaz de abrir-lhe as portas da fama.
Fecharam-se
na mesma hora. Ficou com fama de maldito, raivoso, que o preconceito racial
tornou irremediável. Conseguiu publicar outros três romances, contos, sátiras.
Não foi longe: a ditadura do silêncio acabou com ele, levou-o ao álcool e este
aos delírios. (DINES, 2010).
Lima Barreto é um escritor de muita qualidade. Isso é indiscutível. Mas por que ele permanece, na literatura brasileira, esquecido como o retrato apoplético de um parente bêbado do qual ninguém deseja recordar?
O intelectual negro na República Velha: racismo e alcoolismo na vida de Lima Barreto
Inicialmente, lembro a vida difícil que Lima Barreto levou. Ele era um intelectual negro em uma época em que os negros não costumavam ocupar lugares de destaque no campo da intelectualidade (será que isso mudou muito hoje?). Some-se a isso que era extraordinariamente inteligente e dono de uma erudição genuína, o que devia despertar a inveja de muitos contemporâneos seus "não tão brilhantes" e que, portanto, precisam impor ares de falsos eruditos (isso foi no começo do século XX, repito, quando erudição ainda tinha algum valor social; hodiernamente, todavia, a estultícia foi alçada à condição de "virtude") .
A esse respeito, Lima Barreto escreveu nas Recordações do escrivão Isaías Caminha aquela que é, até hoje, uma das mais belas demonstrações literárias de amor ao conhecimento:
A
tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar,
agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai,
que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira
infância, estimulou-me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda
entrado para o colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando
Napoleão ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem era
Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada.
Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na
significação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar
ficaram-me eternamente. Um grande homem!...
O
espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de
outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento.
Pareceu-me
então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem,
a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las constituíam, não só
uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um titulo
para o superior respeito dos homens e para a superior consideração de toda a
gente. (LIMA BARRETO, 2010).
No plano de uma República ideal, o merecimento de Lima Barreto deveria tê-lo feito galgar posições respeitáveis na sociedade. Seu intelecto privilegiado, associado a um talento literário perspícuo, credenciavam-no a tal. Pois o "ethos" republicano é a isonomia - e nisso se inclui o critério meritório, posto que este esteja cada vez mais esquecido, especialmente no serviço público. Mas Lima não viveu numa República ideal - como as que estão descritas nos livros lidos nas faculdades de direito até hoje; ele viveu na República Velha brasileira, com todos os seus vícios nascentes. E aqui quero destacar sua coragem: entre silenciar, acovardado e dócil, diante das injustiças republicanas, deixando-se guiar pelos falsos discursos isonômicos, Lima Barreto preferiu posicionar-se corajosamente como um observador arguto de todos os maus vezos que maculavam (e ainda maculam) o Estado no Brasil. Também temos de considerar as dificuldades financeiras que sustaram precocemente sua formação acadêmica: com o diagnóstico da demência do pai, teve de abandonar a Escola Politécnica no Rio de Janeiro. Cedo se tornou arrimo de família. Para piorar, era um boêmio - e alcoólatra. Por mais de uma vez, foi internado em hospitais psiquiátricos, a fim de tratar sua "doença mental" (diagnóstico da época para o alcoolismo). É desse período que advém o seu Diário do Hospício, só publicado postumamente em 1953, que conta a experiência desesperada de um escritor doente - e já caminhando para a morte - internado no Hospício Nacional dos Alienados, no período compreendido entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de 1920, na cidade do Rio de Janeiro. Essas mesmas experiências de sua vivência no hospital renderiam também um romance inacabado (Cemitério dos Vivos), onde o escritor procurou traduzir sua tragédia pessoal de internamento numa versão ficcionalizada e terrivelmente tocante :
Estive
no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para
aqui pelas mãos da polícia.
Tiram-nos
a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem
chinelos ou tamancos nos dão. Da outra vez que lá estive me deram essa peça do
vestuário que me é hoje indispensável. Desta vez, não.
[...]
Não
me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da
polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas
devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades
de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais
de loucura: deliro.
[...]
Além dessa primeira vez que estive
no hospício, fui atingido por crise idêntica, em Ouro Fino, e levado
para a Santa Casa de lá, em 1916; em
1917, recolheram-me ao Hospital Central do Exército, pela mesma razão; agora,
volto ao hospício.
Estou
seguro que não voltarei a ele pela terceira vez; senão, saio dele para o São
João Batista, que é próximo. Estou incomodando muito os outros, inclusive os meus
parentes. Não é justo que tal continue. Quanto aos meus amigos, nenhum apareceu,
senão o senhor Carlos Ventura e o sobrinho. (LIMA BARRETO, 2010).
Recordo ainda que Lima Barreto viveu na sociedade carioca da passagem do século XIX para o século XX, quando o preconceito contra o negro existia abertamente (sequer existia censura social a tal conduta!). Imagine-se, então, o nível de discriminação que devia experimentar o negro que se colocasse na condição de um intelectual, de um literato destacado. Imagine-se, ainda, se ele optasse em usar da literatura para denunciar as injustiças sociais que o circundavam, promovendo a esfoladura dos tão caros baluartes republicanos, incensados ao modo dos europeus, mas praticados de um "jeitinho" bem brasileiro, isto é, na base dos conchavos, dos acordos miúdos de corredores, dos ranços nepóticos dos "excelentíssimos senhores doutores", dos títulos nobiliárquicos herdados por gente incompetente que se apropria da máquina pública como um bebê recém-nascido da sua ama de leite. Imaginemos isso e concluiremos que Lima Barreto foi - e continua a ser - um dos mais corajorosos escritores brasileiros. A repetição da farsa 90 anos depois: a injusta condenação de Lima Barreto ao esquecimento
Todos esses detalhes biográficos prestam-se a um mesmo propósito: demonstrar que, na história da literatura brasileira, Lima Barreto experimentou como poucos o gosto amargo da discriminação. Arrisco-me a dizer que ninguém sofreu tanto preconceito quanto ele - por ser negro, por ser pobre, por ser dono de uma erudição verdadeira, por ser crítico da República, por ser inimigo do jornalismo venal dos lobistas encastelados nas redações. Acima de tudo, Lima Barreto fez da literatura uma profissão de fé no combate às injustiças sociais do seu tempo. E pagou um preço caro por isso.
Após toda essa exposição, fica fácil entender o quão injusto é deixar um escritor tão importante, em pleno século XXI, condenado a ser um ilustre desconhecido do leitor brasileiro. Mesmo com toda sua obra em domínio público, é um autor muito pouco lido e estudado. Há até quem o considere "chato", "resmungão"! Mais triste ainda é pensar que, parafraseando o filósofo alemão Karl Marx no seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, a história de vida do escritor fluminense aconteceu como tragédia e está a repetir-se desta vez como farsa: vitimizado duplamente, ora pelo racismo epocal, ora pelo esquecimento hodierno de sua morte trágica, ocorrida no dia 1 de novembro.
Sendo assim, no Dia da Consciência Negra, os 90 anos da morte de Lima Barreto, por tudo o que o escritor representou, seja na história da literatura brasileira, seja na história do preconceito racial no Brasil, é uma data que, indubitavelmente, merecia ser lembrada por todos nós. Quem sabe assim possamos evitar este triste fim de Lima Barreto...
REFERÊNCIA
DINES, Alberto. Da ditadura do silêncio à "lista negra". Disponível em: www.observatóriodeimprensa.com.br, ed. 606, São Paulo, 2010. Acesso em 18 de nov. 2012.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Diário do Hospício e o Cemitério dos Vivos. Organização e notas Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. Prefácio Alfredo Bosi. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 352 p.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Diário do Hospício e o Cemitério dos Vivos. Organização e notas Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. Prefácio Alfredo Bosi. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 352 p.
______. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Introdução de Alfred Bosi. Notas de Isabel Lustosa. Prefácio de Francisco de Assis Barbosa. São Paulo: Penguim Companhia
das Letras, 2010. 312 p.
______. Triste Fim de Policarmo Quaresma. Organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz. Prefácio de Oliveira Lima. São Paulo: Penguim Companhia das Letras, 2011. 367 p.