A navegar pelo Facebook, deparo-me com vários
amigos naquela rede social a compartilhar, em tom pilheriador, o texto de uma
colunista social de Brasília. Na manchete, via-se a expressão curiosa que, para
o divertimento geral da nação, seria capaz de arrancar risadas do mais sisudo
dos leitores: “Juliana Puppin dá dicas para ter corpo metafísico em meio à
rotina”.
Li a notícia no afã de descobrir o que seria,
afinal, o tal do "corpo metafísico". Saí frustrado. Tudo o que encontrei foi o
conteúdo previsível dessas notícias de colunas sociais: uma advogada, socialite
endinheirada, põe-se a explicar como cuida do seu corpo esbelto no dia a dia terrivelmente
sacrificante e penoso de quem acorda todos os dias, obcecado, para exercitar-se
e queimar o maior percentual possível de gorduras. Ali a jovem
senhora é descrita como adepta de "treinos ondulatórios" - seja lá o que isso for - com o seu personal trainer e que tem curtido
ultimamente praticar Muay Thai ao ar livre. Em resumo: um desfile de informações inúteis,
típico, por sinal, desse tipo de publicação que visa a exaltar o ego de celebridades e “gente
diferenciada” da alta sociedade brasileira.
Obviamente, eu jamais leio conteúdos desse
nível. Fi-lo, todavia, estimulado pela expressão “corpo metafísico”, desejoso
de entender esse novíssimo aparato filosófico conceitual. Ao final, não achei
explicação satisfatória para qualquer sentido “metafísico” que a autora da
matéria quisesse emprestar à rotina de treinos da advogada marombeira.
Apesar disso, flagrei-me a matutar sobre
aquela expressão curiosa da filosofia fútil: corpo metafísico. Não me parecia bastante afirmar que o emprego do termo “metafísico”,
para referir-se ao “corpo”, era o simples resultado do analfabetismo filosófico
da colunista que escreveu aquela matéria. Eu precisava ir além daquela obviedade. Tinha
de haver algo mais naquele conceito inovador.
Foi assim que, ensimesmado, percebi que
aquela coluna sobre a rotina banal duma advogada estava, em verdade, a anunciar
uma das maiores revoluções da história do pensamento filosófico mundial. Trata-se
da "doutrina do corpo metafísico".
Proponho-me o desafio de explicar os prolegômenos dessa filosofia,
caro leitor.
Filosoficamente, a "doutrina do corpo
metafísico" tem como matriz teórica uma interpretação renovada da Grundlegung zur Metaphysik der Sitten
("Fundamentação da Metafísica dos Costumes"), do filósofo alemão
Immanuel Kant.
Em sua obra clássica, Kant propunha o estudo
da filosofia moral expurgado de quaisquer influências empíricas, fundadas em
princípios da experiência, uma vez que a dimensão da obrigação moral não se
situaria na natureza do homem ou de suas condições, mas sim no plano
apriorístico da razão pura. Assim, o gênio alemão buscava extrair a base da sua
filosofia pura dos costumes, a fonte dos princípios práticos que residem a priori na nossa razão. Kant, com sua filosofia
moral pura, queria encontrar diretrizes práticas capazes de evitar a
degenerescência dos costumes desapercebidos duma razão apriorística.
Pois bem. A filosofia moral do "corpo
metafísico" segue a da doutrina kantiana: é preciso cultivar um corpo calipígio, bem
fornido, ancudo. Para isso, é preciso expurgar toda influência empírica sob a
forma de gorduras e carboidratos. Só a pura razão proteica pode levar ao
crescimento da musculatura em patamares olímpicos.
Dessa maneira, o sonhado "corpo
metafísico" não pode ser atingido em um treino baseado em princípios da
experiência – desses que o leitor encontra na academia de musculação da esquina, onde marombeiros
ficam a puxar ferro dia e noite e a entupir-se de anabolizantes. Muito pelo
contrário. O corpo metafísico é o resultado de um treinamento ondulatório,
guiado por suposições apriorísticas de musas "fitness" na internet. Seu
fim é levar o malhador (ou malhadora, tanto faz) ao paroxismo da calistenia pura: um estágio em que o
marombeiro já não pratica o exercício para ficar sarado, ter um corpo bonito e saudável.
Não basta fazer as séries de exercícios para que o corpo seja considerado metafisicamente
bombado. É preciso malhar não pelo corpo em si, mas pelo amor ao exercício! É preciso
amar o supino, o voador, o agachamento; é preciso idolatrar cada movimento com
o Kettlebel e usar tanto o haltere pintado quanto o emborrachado, pois, em se tratando
de instrumentos ginásticos, o corpo metafísico não faz qualquer diferenciação. É necessário, finalmente, declarar sua fidelidade à razão proteica, materializada na marmita de peito de frango e batata doce, que deve acompanhar o marombeiro kantiano em todo e qualquer momento do seu dia ao lado do seu shake de whey protein. Na metafísica dos costumes do corpo metafísico, a disciplina na dieta e nos exercícios é tudo.
É incontestável que o corpo metafísico está a cobrar um preço elevado, mas não sem recompensa. Quem segue essa doutrina pode aparecer em coluna social, a dar dicas de treinos para os mortais de corpos obesos, prenhes de lipídios.
Como bônus, é possível ainda exibir a "boa forma metafísica" no
Instagram. Afinal, no mundo físico, a carne pode até perecer com o tempo; mas,
no mundo metafísico e idealizado das fotos compartilhadas nas redes sociais, o
corpo é puro e etéreo, o sorriso é plástico e a inveja do "corpo metafísico" é imortal - ou,
para usar uma expressão bem ao gosto dos causídicos marombeiros, imprescritível.
Esses são os prolegômenos da crítica da razão
proteica pura. Portanto, caro leitor, da próxima que fores a uma academia,
lembra-te dos fundamentos da metafísica dos costumes do corpo metafísico.
Expurga do teu treinamento todo e qualquer princípio da experiência de comer carboidratos;
afasta de ti este cálice que é a vileza da gordura! Lembra-te sempre de que não
basta malhar todos os dias para que a maromba seja considerada moralmente boa.
É preciso malhar por amor ao exercício. Só assim se pode alcançar o pináculo da
existência humana – o corpo metafísico.
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