terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

MMA e a visão reducionista do esporte no Brasil


          De uns tempos para cá, tem havido uma popularização crescente do MMA no Brasil. Para quem não sabe, MMA é o acrônimo em inglês para “mixed martial arts”. A tradução desse acrônimo já nos permite entender seu significado: trata-se de desporto de combate que visa a conjugar distintas artes marciais. Com esse fim, lutadores rivalizam uns com os outros numa arena de oito lados – a que se denomina de “octógono”, embora alguns eventos adotem o formato de um ringue tradicional. O MMA, no fim, é isto mesmo: um polígono de modalidades de artes marciais.
          O crescimento em popularidade do MMA no Brasil não veio, todavia, desacompanhado de críticas. “MMA não é esporte; é selvageria”. Eis uma curta afirmação que bem resume quase tudo o que costuma ser ventilado contra a mistura de artes marciais. Não creia o leitor que esse ensaio rudimentar de crítica tenha partido de figuras inexpressivas. O jornalista Milton Neves, por meio do seu Twitter, já chegou a comparar as lutas a brigas de gangues e insinuar que o fã de MMA “deve achar uma beleza leão comendo cristão em Roma”. Outro nome de peso do jornalismo brasileiro afirmou em artigo recente que “Esta nova luta chamada UFC-MMA não pode ser considerada esporte. É uma armação comercial, manipulada, montada por espertalhões e avalizada por um sistema midiático que se associou para anestesiar o nosso senso crítico. Esta modalidade pugilística inventada pela família Gracie seria inofensiva se a mídia inteira – rádios, TV aberta, TV por assinatura, jornalões sisudos, jornalecos e portais-bolha da internet – não se acumpliciasse para promover 'a competição do futuro'. Nas TVs e rádios, jornalistas jovens, lindas e animadas, anunciavam o ‘fenômeno que está apaixonando crianças e mulheres.’ Isso é criminoso, sobretudo em concessões públicas.” (DINES, 2012).  
         Essas críticas não são novas. E nem são específicas do Brasil. Acompanham a prática desse tipo de luta desde seu surgimento. Foram especialmente nocivas nos Estados Unidos da América, haja vista o UFC (Ultimate Fighting Championship) – o maior evento de MMA da atualidade - ter sido criado em 1993 como um torneio sem muitas regras, inclusive sem a divisão de categorias de lutadores pelos pesos respectivos – aspecto tradicional da prática de esportes de combate. Não raro, quem assiste a algum dos primeiros eventos do UFC fica surpreso em notar oponentes com diferenças de peso gritantes, digladiando-se no octógono.
          Mas, afinal, o MMA é ou não é esporte?
          Acredito que a resposta a essa pergunta esteja na própria ideia do que se entende hoje por “esporte”. Se partirmos de uma noção correntia de que a prática desportiva confunde-se com alguma forma de atividade física humana, que visa a produzir entretenimento ao requerer habilidades específicas, podendo ainda ser competitiva, de modo que atletas disputem torneios com vistas a definir um vencedor, isto é, aquele que possui a mais apurada perícia no desporto, não vejo como alguém possa sustentar que o MMA não é esporte. Ele se enquadra sem refutações nos característicos citados acima. Além disso, parece próprio do senso comum universal quanto ao conceito de esporte que, mesmo as atividades físicas agressivas, contanto que estruturadas sob a forma de técnicas de combate, podem ser guindadas à condição de práticas desportivas. Ignorar esse último asserto é afirmar, de modo implícito, que toda arte marcial, por ser potencialmente lesiva a outrem, não se poderia afirmar enquanto desporto.
          O leitor já nota, a esta altura, que a discussão quanto ao MMA ser ou não esporte carece de fundamentos. É, o mais das vezes, fruto do destempero verbal daqueles que, ignorando o profissionalismo que envolve o autêntico artista marcial, querem fazê-lo parecer um “lutador de rua”, um sujeito violento que agride gratuitamente e vale-se do desejo sanguinário da audiência para locupletar-se. Nada mais equívoco. Os lutadores de MMA são atletas no mais lídimo sentido da palavra: possuem equipe de treinadores, programas de aperfeiçoamento do condicionamento físico, acompanhamento nutricional esportivo. Ninguém sobe ao octógono só porque “brigou na rua”. Pode até ser que algum lutador tenha extravasado sua agressividade inata de uma maneira reprovável nalgum momento de sua biografia; mas decerto ele logo se pôs a treinar numa academia, optando por alguma modalidade de arte marcial – ou, como sói acontecer no MMA, por várias delas.
          Há ainda outro ponto a considerar-se. O MMA, ao contrário do que seus críticos propalam ao acusá-lo de “selvageria”, é regido, sim, por regras. As regras, ainda que tenham sutis variações de acordo com a comissão do torneio em disputa, são pensadas para proporcionar o máximo de liberdade na mistura das artes marciais, gerando, da maneira mais extrema possível, entretenimento de embate corporal, sem que isso, no entanto, permita que os organizadores possam descuidar da saúde do atleta. Daí o porquê de eventos sérios de MMA sempre possuírem equipe médica ao lado do octógono, estando ainda o árbitro autorizado a intervir para interromper o combate, quando notar que um dos contendores não mais tem condições de prosseguir com a peleja sem que tal ponha em risco sua integridade física.
          No fim das contas, o que observo nessas críticas dirigidas ao “mixed martial arts” é, para além de uma notável incompreensão e desconhecimento da prática desportiva em si, uma visão reducionista do conceito de esporte, que teima considerá-lo tão somente aquilo que se convencionou classificar como tal. Ignoram, dessa forma, que o desporto é um conceito em constante evolução na história da humanidade. Quantos esportes novos não surgiram com o passar dos anos? O fato de o taekwondo ter sido incluído no rol de esportes olímpicos apenas nas Olimpíadas de Sidney (Austrália), em 2000, não fez de sua prática “esportiva”; ela já o era mesmo antes desse reconhecimento, como as demais artes marciais também o são. Aliás, se uma dada modalidade de artes marciais é incontestavelmente um tipo de “esporte”, a exemplo do jiu-jitsu, do judô, do caratê etc., porque a mistura de todas elas não o seria?
          É preciso, portanto, superar essa visão reducionista do conceito de esporte, que visa assim qualificar tal ou qual modalidade, em geral de maneira tanto mais arbitrária quanto irrefletida. O MMA é produto da evolução da prática do desporto. É, sim, esporte extremo (o mais extremo dos esportes de combate). É, sim, violento, mas dentro de parâmetros aceitáveis, com regras bem definidas, as quais tem por objetivo preservar a integridade física do atleta – ainda que em alguns momentos a plasticidade brutal dos golpes desferidos contra o oponente possa vir a chocar o brio dos mais sensíveis.
          De minha parte, sou assumidamente fã de MMA. Não nego: é meu esporte favorito. Por sinal, o único cujo noticiário especializado e lutas televisionadas acompanho regularmente, além de, sempre que minha agenda profissional e acadêmica permite, frequentar alguns eventos pela cidade. Como admirador das artes marciais mistas, as críticas que visam a desqualificar sua prática enquanto “esporte”, buscando preconceituosamente diminuir sua importância ao vinculá-la à brutalidade apelativa, nunca me tomaram muita atenção. Definitivamente não me fizeram deixar de apreciar o esporte extremo. Quis, no entanto, escrever sobre o tema, pois me incomoda o conservadorismo acrítico de quem deseja “colocar um freio no curso da história”. E, como tentei demonstrar neste artigo, sequer refletindo suficientemente sobre os fundamentos de sua crítica.
          O MMA é esporte, sim. E é esporte de artes marciais como qualquer outro. Apenas foi concebido sob um prisma novo (fusão de modalidades de combate), com sistema de regras próprias, ganhando tanto mais adeptos quanto mais os desportistas notam que sua prática não é perigosa para aqueles que o fazem de maneira profissional. Negar ao MMA a pecha de “esporte”, acusando-o disso ou daquilo, não é senão produto da má vontade daqueles que insistem em não reconhecer que as atividades esportivas encontram-se em constante evolução, como de resto o próprio homem está também. Novos esportes, assim, sempre surgirão. O “mixed martial arts”, nesse sentido, é apenas mais um deles.     

REFERÊNCIAS

DINES, Alberto. A indústria decidiu naufragar. Observatório da Imprensa. São Paulo, 24 jan. 2012. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_industria_decidiu_naufragar. Acesso em: 07 fev. 2012.

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