segunda-feira, 24 de setembro de 2012

BIRDY E RIMBAUD CONTRA O ESTEREÓTIPO ESTUPIDIFICANTE DA ADOLESCÊNCIA: ou pequeno manual para adolescentes que desejam se tornar adultos inteligentes

 

 
Adolescência: a invenção moderna de uma criatura monstruosa


Há uma recente transformação no estatuto da adolescência na atualidade; se até a primeira metade desse século tudo o que o adolescente desejava era ser incluído no mundo dos adultos, hoje a adolescência é hipervalorizada e são os adultos que tentam se identificar com os adolescentes.  

Contardo Calligaris.

Muito já se disse sobre a adolescência. Na verdade, o entendimento desse período da formação humana tem sido um dos temas abordados amiúde por psicólogos e psicanalistas. As opiniões são as mais variadas: de “luto da infância” à correntia “fase de transformação biológica e emocional”, é possível encontrar definições para todos os gostos e tamanhos. Até um clichê já se cunhou para classificar o momento: “aborrecente” - termo usado na confluência das noções de “aborrecido" e do sujeito que adolesce.
Imediatamente, identifico dois problemas nessa situação. O primeiro, e mais óbvio deles, é que a assimilação conceitual de uma "ideia de adolescência" dá-se, em geral, por pais sem nenhum preparo científico para compreender o conceito com o qual estão a lidar. Isto mesmo: a maioria dos pais educa seus filhos no amadorismo, ignorando a psicologia e a psicanálise (falar que ignoram a filosofia já é desnecessário truísmo).

Logo, para pais-educadores que desprezam reflexões de ordem educativa, é natural “comprar” o ideário vendido nos livros de autoajuda - que quase nunca analisam a juventude desde uma perspectiva crítica, optando em tratá-la qual um "rito de passagem" inócuo ao mundo adulto. Isso para não falar daqueles pais extremosos que se deixam enganar por discursos oportunistas, visto que desprovidos de qualquer cientificidade, a apresentar fórmulas para "domar" a juventude - indo dos “manuais sobre como tornar seu bebê tão inteligente quanto Einstein fazendo-o ouvir música erudita mozartiana no berço até lavar o cérebro do microinfante” aos adeptos das sempre condenáveis práticas herdadas de uma tradição de violência ditatorial (a "pedagogia da palmada”). “Adolescentes”, esses livros frequentemente ensinam, são pessoas em “fase de transformação”. E é natural “ser” assim um tanto atabalhoado, um tanto desnorteado, para não dizer displicente mesmo com a própria formação intelectual. O conhecimento vulgar trata o adolescente como uma folha de papel de impressão delével, que só se começa a colorir mui tardiamente com as tintas permanentes da paleta da cultura e da intelectualização.
Obviamente, estudiosos sérios de um assunto sério, como é a adolescência, hão de repelir essas vulgaridades conceptuais. Recorrendo à historiografia, alguns mitos são facilmente degringolados. O primeiro deles é acreditar na ideia de uma adolescência anistórica e atemporal. Quem assim crê ignora que a puberdade, entendida como maturação sexual, nem sempre esteve acompanhada da "ideologia adolescente”. Adolescência é, na verdade, uma “invenção” moderna.

É nesse sentido que se manifesta Contardo Calligaris (2009):
Nossos adolescentes amam, estudam, brigam, trabalham. Batalham com seus corpos, que se esticam e se transformam. Lidam com as dificuldades de crescer no quadro complicado da família moderna. Como se diz hoje, eles se procuram e eventualmente se acham. Mas, além disso, eles precisam lutar com a adolescência, que é uma criatura um pouco monstruosa, sustentada pela imaginação de todos, adolescentes e pais. Um mito, inventado no começo do século 20, que vingou sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial.    
Uma vez inventado o mito da “adolescência”, passamos ao segundo dos problemas – decerto o mais grave. Trata-se da concepção segundo a qual a fase de transformações psicofisiológicas, no curso da qual o sujeito adolesce, tende a absolver toda e qualquer forma de experimentação cultural desorientada ou deficiência de formação intelectiva. Nesse prisma, o jovem estaria livre para participar das mais distintas experiências no campo da cultura - podendo até mesmo prescindir da intelectualização prematura. Em princípio, numa sociedade idealizada, não haveria problema nisso. Poderia ser salutar ao jovem o contato com distintas influências, alargando seus horizontes de entendimento vital.

Mas o problema reside justamente nisto: não vivemos numa sociedade “ideal”. Vivemos, isto sim, numa sociedade de massas direcionada à consumição do kitsch. E a adolescência afigura-se como a vítima ingênua - e praticamente indefesa - da indústria cultural capitalista que não reclama raciocínio ou inteligibilidade.

Estupidificando a juventude: o significado industrial do mito da adolescência moderna
A boy band inglesa One Direction: o mais novo produto estupidificador da indústria cultural voltada aos adolescentes.
 
No campo da cultura produzida em escalas industriais, quando se pensa na adolescência “moderna”, no jovem da “era digital-globalizada”, descreve-se logo a imagem de um sujeito desapercebido do mais comezinho senso crítico. É que “quem está na fase de transformações” pode tudo: de dançar as músicas analfabetas de Mr. Catra a permanecer horas diante da tela da televisão consumindo patéticos melodramas novelescos (das seis, das sete, das oito, das nove, das dez horas); de ver seguidas sessões de blockbusters hollywoodianos caça-níqueis a "torcer" pelas vítimas da acefalia que participam da "nave louca" dos reality shows, tudo é “fase”, “logo passa”. Afinal, na cartilha capitalista escrita para o público consumidor jovem, “aproveitar a juventude” é expressão sinônima de "estupidificar a juventude".
A indústria cultural, no entanto, diferentemente de boa parte dos pais, sabe o significado do mito da adolescência moderna. Ultrapassando as pretensas crises emocionais que decorrem do período, as quais são deixadas para reflexão dos psicólogos e dos psicanalistas, cuida-se logo de “empurrar goela abaixo” o estereótipo estupidificante do adolescente bestializado, um "trapo humano" jovem e insensível. Despreza-se a leitura, tida como “tarefa chata da escola”, travestindo de "poesia" os “ex-my love” da vida – como se pudesse haver perenidade artística em algo tão ruim e de criatividade equivalente a de uma bactéria anaeróbia.
No mundo da música, surge a fórmula dos astros sob a forma de boys band: rapazes de boa aparência, hábeis na dança, cantando músicas com refrões mais açucarados que refrigerante de groselha, caem fácil no gosto das adolescentes que iniciam a convivência cíclica com a menarquia. Há também as cantoras "pop" do nível de Britney Spears e Miley Cyrus, que “inspiram” toda uma geração com o seu “talento” em provocar escândalos, usados espertamente para disfarçar a limitação vocal que as torna desafinadíssimas e, portanto, inaceitáveis a quem tenha um mínimo de inteligência musical auditiva.
Em geral, a reação dos pais consiste em manter-se "equidistante" das partes no conflito (o jovem e sua formação cultural). Deixam o adolescente ser orientado pela televisão (no Brasil, a escola há tempos não constitui o núcleo fomentador intelectual da sociedade), jogando-o no way of life da “Malhação”, novela televisiva que há décadas apresenta o melodrama de jovens da classe média carioca mais preocupados com quem vão transar nas baladas do que em passar no vestibular (se é que existem universidades nesse mundo fictício do tédio juvenil). Há ainda os pais de “espírito jovem”: “embarcam na onda” e chegam ao cúmulo de reviver (ou seria viver?) a adolescência perdida - tomada na sua conotação mais ignóbil. Ei-los, então, ao lado dos filhos, lançados ao abrigo de barracas improvisadas na porta de shows cujos artistas apresentar-se-ão dali a meses! “É só uma fase”, dizem, buscando justificar a injustificável falta de senso crítico que os leva a dar com as canastras na água. “Logo passa."

Bullying anti-inteligência: a decadência adolescente
 

Toda essa complacência é incapaz de esconder, contudo, a decadência cultural que daí advém. O jovem, tomado nesse plano, consome programas de TV e letras de músicas que só acentuam o já acentuadíssimo grau de analfabetismo funcional da sociedade brasileira. E a coisa não para por aí. Há também o surgimento do bullying contra aqueles que negam o estereótipo estupidificante da adolescência. Se um jovem, por exemplo, põe-se a ler as partituras com os estudos de Abel Carlevaro para o violão, há logo de ser chamado de “anormal”, “esquisito”; sim, pois todos os seus amigos que tocam o mesmo instrumento estão a dedilhar os acordes de dancinhas sem-vergonha, entoando versos de canções que rimam “cantar” com "amar" ou contando as “estrelas lá no céu que vão buscar”. Claro, há também que lembrar das odes aos “praieiros e guerreiros que estão solteiros” – esses heróis da tragédia pós-moderna da intelectualidade. Da mesma maneira, se o adolescente é flagrado a ler obras de Machado de Assis ou José de Alencar, tomado por uma milagrosa inteligência inata que o impulsiona incontornavelmente ao conhecimento, deve tomar cuidado ao proceder em público. Uma atitude subversiva dessa ordem, nos moldes de leitura espontânea de literatura brasileira, sem a interveniência de imposição escolar para exames ou provas, pode gerar uma série de represálias discriminatórias, que vão dos conhecidos epítetos de "CDF" ou “nerd”, pechas que nenhum adolescente sente orgulho em carregar, podendo até atingir, em casos mais graves, o píncaro da bestialidade infantojuvenil manifestada num gesto abrutalhado de agressão ao jovem intelectual. Se esse mesmo jovem admitir-se, então, leitor de filosofia, aí a liberdade de pensamento periclita: não surpreenderia ver os pais do adolescente, hipnotizados pelo mito da adolescência moderna estereotipada desde um viés estupidificante, buscar em juízo alguma medida de interdição, se possível, internando-o num manicômio judiciário, onde estará a salvo de toda e qualquer reflexão filosófica.
Mas essas consequências a que aludo são previsíveis. Em uma sociedade de analfabetos funcionais, ser inteligente na adolescência virou “crime”. A conduta deve, portanto, ser vigiada e punida, para evitar, pela disciplina do corpo e da mente, que se rompam esses grilhões, engendrando uma “revolta cultural” contra a tecnologia da alma que converteu em prisão o mito de ser adolescente contemporaneamente.
O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais, rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão, era sua materialidade na medida em que ele é instrumento e vetor de poder; era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da “alma” – a dos educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras – não consegue mascarar nem compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos. (FOUCAULT, 1999, p. 29).
Há, em conclusão, um movimento coordenado da indústria cultural voltada ao público teen. A adolescência, enquanto “invenção” moderna, é um nicho mercadológico rentável como qualquer outro. Para ela, são forjados cantores de playback que lotam estádios, romances de bruxos infantis e vampiros “água com açúcar”, revistas que elegem “o colírio” ou “a mais gatinha”. Nesse “mundo adolescente”, ser “modelo” é a profissão dos sonhos, o cinema blockbuster de Michael Bay é mais importante que o de Ingmar Bergman e é normal ser um fã histérico acampando na porta de casas de espetáculos ou um fanático religioso mirim que se predispõe, com uma bíblia debaixo do braço, a “exorcismar o mal” da humanidade sem nenhum senso crítico.
Felizmente, como sói acontecer com toda a regra, também a pubescência apresenta suas exceções. A história registra casos de grandes nomes das artes cujo talento manifestou-se ainda cedo. Isto é, na adolescência.
O exemplo de Rimbaud na poesia

O poeta simbolista francês Jean-Nicholas Arthur Rimbaud (1854-1891) na adolescência.
 
Na Literatura, dentre os possíveis exemplos, o mais notável deles é, indubitavelmente, o de Arthur Rimbaud. O grande representante da poesia simbolista francesa construiu sua obra magna ainda na adolescência. E, da mesma forma que colocou cedo seu nome no panteão dos grandes literatos, cedo deixou de escrever poesia, abandonando o ofício artístico quando contava apenas 20 anos. É, até hoje, o “adeus” mais triste da história da Literatura. Um gênio precoce, um gênio que quis superar a si próprio, inclusive por abandonar a poesia. 

Como bem esclarece Ivo Barroso (2009, p. 13):
Sua ânsia de superação, em tudo – mas principalmente de auto-superação – faz com que ele, consciente embora do quanto havia conseguido conquistar de território poético, largue tudo de mão para ir desbravar os territórios do não-poético, do apoético, sem deixar no entanto de consagrar a essa nova aventura o mesmo fervor com que se entregara à poesia.
Um verdadeiro fenômeno de precocidade? Espantoso caso de predestinação? Uma vida em duas etapas que se completam? Direi: Um ser que conseguiu viver duas vidas, ambas com total e profunda intensidade. Enfim, um homem que passou duas vezes pelo Inferno!

O problema de exemplificar "inteligência na adolescência" com Rimbaud é a constatação de que o poeta francês pertence a um outro século e, portanto, a uma sociedade estruturada de maneira substancialmente diversa da nossa. Por isso, escolhi o exemplo atual de uma cantora muito jovem que, apesar de "pop", demonstra que é possivel ser adolescente sem comprometer a própria sofisticação.   
O exemplo de Birdy na música pop

Capa do álbum "Birdy", lançado em novembro de 2011 no Reino Unido.
 
Na música pop, tenho como exemplo digno de talento adolescente precoce a cantora Jasmine van den Bogaerde. Nascida em 1996 em Lymington, Hampshire, Inglaterra, ela é mais conhecida como Birdy - a alcunha que recebeu, ainda criança, dos pais.  Pois foi usando desse nome artístico que Birdy gravou um ótimo disco quando contava apenas 15 anos de idade.
Lançado em novembro de 2011, o álbum homônimo “Birdy” compõe-se, basicamente, de um repertório de covers. O detalhe é que as versões foram elaboradas, em geral, a partir de canções retiradas de bandas do chamado movimento “indie rock” – boa parte delas desconhecida do grande público brasileiro. O risco de que um disco nesses moldes produzido viesse a descambar para a pieguice adolescente brejeira era grande: bastaria um tom apelativo e teríamos mais uma cantora teen de sucesso comercial, alegrando a saúde financeira de produtores e empresários da indústria fonográfica. Mas o que se ouve em “Birdy” é algo completamente distinto. Há uma cantora jovem - muito jovem, por sinal – executando lindamente seu piano com uma voz madura e de timbre mui elegante.
A faixa de abertura “1901” demonstra claramente que o refinamento de Birdy está muito além da limitação auditiva a que a maioria dos adolescentes encontra-se aprisionado. Com muita maturidade, Birdy consegue recriar a canção originalmente gravada pela banda “Phoenix” com uma distinção vocal ímpar – rara de se ver hoje em dia na música pop.
Poderia ser um lampejo feliz de um debut. Mas a desconfiança rapidamente cessa pela ouvida das faixas seguintes. Tanto em “Skinny Love” quanto em “Shelter”, cujas gravações originais pertencem, respectivamente, a Bon Iver e The xx, fica claro que a produção musical do álbum soube conduzir muito bem o talento da menina, destacando a delicadeza de seu timbre vocal numa sonoridade melancólica, porém agradável.
Cena do videoclipe gravado para a promoção de "People Help The People", terceiro single do álbum "Birdy" (2011).
Especialmente em “People Help The People” do Cherry Ghost, Birdy demonstra uma maturidade excepcional numa faixa de boníssimo gosto, podendo-se divisar claramente os acordes do seu piano, mesmo quando da entrada dos demais instrumentos no acompanhamento (bateria, baixo e violoncelo), em nada comprometendo a emotividade de sua interpretação.
O piano solo de Birdy ganha ainda destaque em faixas como “Terrible Love”, do The National, e “The District Sleeps Alone”, do The Postal Service. Aí se pode perceber que, além de cantora competente, a inglesa domina bastante o seu instrumento (nem surpreende, se considerarmos que sua mãe é uma pianista profissional).
Birdy durante sua apresentação na RAK Studios Session.
 
E, mesmo quando Birdy se arrisca a recriar versões de nomes mais conhecidos do show business – como “Fire and Rain”, de James Taylor, e “Farewell and Goodnight” , do The Smashing Pumpkins -, a cantora consegue colocar sua marca pessoal nas versões: um vocal delicado e emotivo na medida certa.
Aos que desejarem apreciar em toda a inteireza o talento de Birdy e a riqueza de sua voz doce, recomendo comparar as versões cover da cantora inglesa com aquelas originalmente pertencentes ao repertórios das bandas de indie rock de onde foram extraídas. Nessa comparação, excetuando-se “Conforting Sounds” do Mew (muito boa já na sua versão original com a guitarra elétrica em destaque), fica evidente a capacidade extraordinária dessa artista em recriar essas canções. Arrisco-me inclusive a dizer que, não fosse pela intervenção magistral do piano de Birdy, eu não teria o apreço que tenho hoje por essas composições. É provável que algumas delas sequer eu conhecesse!
Talento, senso crítico e sofisticação precoces: a esperança de um porvir menos miserável culturalmente
 
Birdy apresenta-se no borough de Hackney, Grande Londres, em novembro de 2011. Foto: REX.
 
Como um bem sucedido debut de covers, é natural que a crítica musical imponha a Birdy o desafio costumeiro a todo artista no mundo da música: a de apresentar um próximo álbum de inéditas, priorizando composições próprias. No entanto, a pergunta que se põe, consistente em saber se a jovem inglesa será capaz de compor tão bem quanto toca o piano ou canta com emoção, já começou a ser respondida nesse mesmo álbum, pois ela assina a autoria da faixa “Without a Word”.
Devo confessar que a elegância vocal de Birdy, misturada a um quê de inarredável melancolia, agradou-me sobretudo pela facilidade com que me remeteu a uma das minhas cantoras favoritas: a estadunidense Fiona Apple. Até mesmo na maturidade precoce atingida na carreira, ambas se assemelham. Afinal, Fiona Apple lançou o brilhante Tidal (1996) quando contava com apenas 19 anos. E Birdy, ainda adolescente, já desponta como um grande talento da novíssima geração de cantoras que se pretendem fazer respeitadas num ambiente cada vez mais inóspito à qualidade musical, tal qual o é o gênero da música pop.
Diante de artistas como Rimbaud, na poesia, e Birdy, na música, é inevitável pensar novamente na adolescência. Como podem, ainda muito jovens, atingir um grau de sofisticação artística tão admirável? Por acaso teriam sido imunizados contra o estereótipo estupidificante da adolescência? Ou seria um mero “golpe de sorte” no mundo das artes?
De minha parte, quero crer que o “segredo” está na iconoclastia. Derrubar o estereótipo estupidificador da adolescência pressupõe compreender, no mundo contemporâneo, o sentido filosófico da invenção desse mito, especialmente nos limites do que propõe a indústria cultural. De fato, inexiste impedimento para que um adolescente venha a se tornar um prodígio precoce no campo das artes ou no da intelectualidade – embora neste último seja algo raríssimo de acontecer. O que se deve ter em mente é que o fato de alguém ser adolescente não implica carimbar o passaporte para a consumição impunível do lixo cultural – como se o cérebro do jovem permanecesse atrofiado até a maioridade. É preciso, ao revés, que os pais entendam aquilo que a filosofia está a pregar faz séculos: talento, senso crítico e sofisticação cultural independem de idade biológica. Aliás, quanto mais cedo se atingir esses patamares, tanto melhor será para a juventude como para a sociedade que nela deposita as esperanças de um porvir menos miserável culturalmente. Um porvir mais digno. Um porvir mais inteligente.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Ivo. Prefácio. In: RIMBAUD, Arthur. Prosa poética. Rio de Janeiro: TopBooks, 2007. 413 f.
CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2009. 88 f. (Coleção Folha Explica).
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1999. 302 f.




















 

domingo, 9 de setembro de 2012

O APOCALIPSE ZUMBI É AQUI: a filosofia de Heidegger e a metáfora dos mortos-vivos


Vivendo num mundo de necedade e horror


The unreal is more powerful than the real. Because nothing is as perfect as you can imagine it. Because its only intangible ideas, concepts, beliefs, fantasies that last. Stone crumbles. Wood rots. People, well, they die. But things as fragile as a thought, a dream, a legend, they can go on and on. If you can change the way people think. The way they see themselves. The way they see the world. You can change the way people live their lives. That's the only lasting thing you can create.

Chuck Palahniuk, "Choke".
 
Faz anos que eu não vejo mais do que trinta minutos, por dia, de televisão aberta no Brasil. A programação não me interessa e, ressalvadas raríssimas exceções, nela nada encontro que me possa estimular intelectualmente. Disso decorre o problema de sentir-se um “peixe fora d’água” numa sociedade como a brasileira, cujos cidadãos, em regra, têm um baixíssimo grau de leitura e guiam suas vidas nas raias dos capítulos de uma novela de enredo terrivelmente medíocre. Na verdade, arrisco-me mesmo a dizer que, à medida que cresce a audiência, diminui o interesse pelos livros. E se considerarmos que, de um lado, a população brasileira figura entre os campeões mundiais de “tempo em frente à TV”, e, de outro, que a programação da televisão aberta quase sempre direciona seus esforços ao culto do “lixo televisivo”, o leitor pode facilmente chegar à conclusão das mais sombrias quanto à estatura intelectual da nossa sociedade. 

É nesse cenário caótico em que vivemos. Um mundo de necedade e horror.

 Às vezes me sinto como Rick Grimes, a personagem principal de “The Walking Dead”, da série de histórias em quadrinhos criada por Robert Kirkman: caminhando entre mortos-vivos, mentalmente agonizantes, esforçando-me para não ser tocado por eles, sob pena de ser contagiado com o mesmo vírus putrefaciente – da carne, das vísceras, do coração.

O arquétipo de um zumbi

Zumbi é flagrado rastejando em busca de carne humana.
 
É curioso notar, por sinal, como a figura dos zumbis exerce fascínio sobre as pessoas. Parece mesmo uma tendência reconhecê-los enquanto mitos urbanos – hoje tão difundidos quanto os sempre carismáticos vampiros. A diferença entre uns e outros, no entanto, extrai-se das possibilidades criativas dos arquétipos: enquanto um vampiro pode se apresentar qual um assassino cruel ou um amante romântico, na literatura e no cinema, um zumbi é sempre um zumbi: um pedaço de carne putrefacta, meio-morta, meio-viva, que perambula pelas ruas com seus membros decepados, exalando um odor insuportavelmente fétido, rosnando, ganindo, lutando por comida, como um cão sem dono. O zumbi alimenta-se de carne humana, degustando-se com o sangue quente da vítima recém abatida, mas nunca sacia sua fome: ele come e não sabe o porquê; ignora os seus atos. Ele apenas se põe a caminhar. Procura um alvo, quer matar, mas a morte não é uma missão, porque missões exigem motivos. Um zumbi nunca tem um motivo. Ele sequer está vivo! Sua meia-vida, sua meia-morte restringe-se a isto: rastejar como um verme em busca de mais e mais comida. Numa palavra, um zumbi busca sempre novas vítimas.
Zumbis, no entanto, são seres lentos. Muitos deles, por terem sido mutilados pela ação putredínea do vírus que lhes degenerou a aparência, são até mesmo incapazes de lutar. Sua força, portanto, não é individual. Zumbis são seres coletivos. Vivem (ou morrem) em grupo. Andam juntos, agrupam-se. Sabem que é na quantidade que cresce as chances de devorarem sua vítima. Numa peleja, afinal, alguém há de acertar a mordida.

 Zumbis nunca vivem em cenários floridos. Para eles, o sol nunca brilha. Só a noite é para todos. Portanto, é parte indissociável do enredo um presente tenebroso, um mundo apocalíptico. A sociedade, como a conhecemos, está morta. Dela só restaram uns poucos sobreviventes, os ainda humanos, lutando pela própria sobrevivência, contando balas de espingarda, fugindo a todo custo dos demais não-seres humanos: perigosos, ampla maioria, são sobretudo violentos quando em contato com os ainda humanos; querem transmitir o mesmo vírus que lhes comeu o cérebro, que lhes cassou a consciência. São trapos humanos devoradores da inteligência alheia, frequentando enforcamentos, parlando como aprendizes de verdugos. Não vão parar até que o último dos humanos cujo cérebro não definhou pelo vírus da degenerescência mental tenha sido arrastado pelas multidões acéfalas que arrancam as próprias mãos em respeito aos cadáveres falecidos na terra firme da autoinjúria. 

Entendendo os mortos-vivos como uma metáfora para a vida 




Ilustração de uma sociedade de mortos-vivos: seria a ficção uma realidade?
 

O mito dos zumbis, que acima procurei descrever, e que tanto encanta a fantasia ficcional de escritores e cineastas, não obstante sua larga popularidade, parece-me longe de uma correta compreensão. O entretenimento que os seres em decomposição proporcionam está além do horror ordinário e do mero susto. Zumbis são uma metáfora para a vida.

Quantos de nós não somos zumbis? Quantos de nós estão a perambular pelas ruas, reproduzindo maquinalmente os afazeres diários, sem jamais se questionar quanto às razões que o conduzem? Quantos de nós já estão mortos e não o sabem, só esperando o epitáfio, o ataúde que lhes permitirá o “descanso em paz”? Somos seres pensantes ou rastejamos, ignorantes, pelas valas da leviandade, procurando a próxima vítima a ser devorada pelo sepulcro caiado que não nos permite olhar criticamente para a própria vida?

Olhando para os lados, logo identificamos os zumbis: são os mortos-vivos do local de trabalho, da vizinhança, até da faculdade. São pessoas cuja vida perdeu (ou nunca teve, o que é ainda mais grave) o sentido do existir reflexivo, a força de um propósito autorreferenciado. Vivem aquilo que Heidegger chamava de uma “existência inautêntica”: esquecem-se de que a morte não é um acontecimento, mas um fenômeno a ser compreendido existencialmente, na tarefa que nos cabe de analisar, de maneira ininterrupta, o nosso próprio eu.

O ente que temos a tarefa de analisar somos nós mesmos. O ser deste ente é sempre e cada vez meu. Em seu ser, isto é, sendo, este ente se comporta com o seu ser. Como um ente deste ser, a presença se entrega à responsabilidade de assumir seu próprio ser. O ser é o que neste ente está sempre em jogo. (HEIDEGGER, 2005, p. 77).



Para os zumbis do cotidiano, a questão do sentido do ser nunca se põe: eles apenas vivem, para falar com Walter Benjamin, na era da reprodutibilidade técnica, repercutindo as consequências de um passado cuja apreensão histórica ignoram (às vezes, propositalmente), na tentativa - debalde - de conferir significação ao existir afastado da noção de temporalidade. Numa palavra, o tempo vai passando, como se seguem os capítulos de uma novela patética cujas personagens digladiam-se durante meses até a culminância melodramática do casamento dos protagonistas. Porque ser feliz para um zumbi é ser previsível. E ser previsível é seguir a tradição perdida no tempo de uma sociedade pré-existente ao agente. Uma sociedade de regras formuladas previamente, incapazes de serem questionadas, postas fora do debate.
Reconhece-se um zumbi no colega de trabalho que não estuda, cuja capacidade reflexiva perdeu-se na burocracia dos papéis em que precisa afundar uma existência workaholic, na repetição comezinha da mentira que é ignorar a morte como fator limitante de suas próprias possibilidades – o elemento cuja antevisão poderia ressignificar a própria vida. Também é zumbi o crédulo das fantasias extraplanares, de deuses poderosos, mistificados pela obediência servil e inquestionável a uma tabula rasa conveniente de dogmas terrenos, posto que apresentados num sentido a-histórico. E o que dizer, então, do moralista hipócrita? Eis um tipo persuasivo de morto-vivo que usa dos seus discursos, apegado à tradição, para pregar a intolerância à diferença que lhe incomoda por razões que ele próprio desconhece.  

"The Walking Dead" à luz do pensamento heideggeriano



Capa do volume I da edição brasileira de "The Walking Dead", publicada pela HQM Editora.

O filósofo alemão Martin Heidegger procurou, com sua obra, reposicionar a discussão ontológica na filosofia moderna, garantindo o protagonismo do ser para o qual ser é um existir, mas é também um compreender existencial. Embora jamais tenha cogitado usar da comparação metafórica, Heidegger poderia muito bem descrever a sociedade que via como o mundo do apocalipse zumbi da série de banda desenhada “The Walking Dead”: as pessoas são “jogadas” num mundo em progresso, porém destruído pela incapacidade de pensar: caminham com cérebros à deriva, afogando-se no mar morto da própria história, consumida por afazeres e pela azáfama da cotidianidade. Estão premidos, mas não sabem. Há um senso de urgência na existência que ignoram, pois a morte nunca lhes aparece qual um muro inexcedível contra o qual mesmo o mais altaneiro dos projetos há de bater e degringolar. A morte é um muro ontológico que nunca se rompe no trajeto da vida do ser.

Como em “The Walking Dead”, vivemos numa sociedade de mortos-vivos. Há zumbis espalhados por toda a parte. Mas, diferente dos da ficção, os zumbis do cotidiano são perigosos; eles são reais. E os poucos seres pensantes que restam precisam unir-se e proteger-se: sacar o revólver do coldre, aprender a atirar para se defender. O vírus putredinoso é de contágio intenso e febril: vem numa mordida, mas vem também do barulho que a todo o momento acorda mais um zumbi desfalecido, recém transformado no monstro devorador do seu passado humano. Logo o som atrairá uma multidão de outros iguais a ele, prontos para censurar o diferente, para atacar aquele cuja carne, cérebro e coração não apodreceram.   
O apocalipse zumbi, definitivamente, já começou.
REFERÊNCIAS
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte I. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005. 325 p.