Georg Trakl nasceu no dia 3 de fevereiro de
1887 na cidade de Salzburgo, na Áustria. Cresceu numa família altamente
problemática. A morte precoce de seu pai (que era vendedor) fê-lo assumir o
fardo de sustentar a mãe e a irmã com quem manteve uma relação incestuosa. Seus
gravíssimos problemas emocionais levaram-no ainda muito jovem a consumir ópio e
cocaína, a buscar nas drogas um alívio que nunca atingiria.
Atormentado pelas lembranças da Primeira Guerra
Mundial, conflito bélico onde serviu como oficial farmacêutico, Trakl, que era
um homem extremamente sensível, não resistiu à dor e sucumbiu aos seus tormentos. No dia 3 de novembro de 1914, suicidou-se no hospital
de Cracóvia (Polônia) com uma overdose de cocaína. Ele tinha então apenas
27 anos.
Autor de obra pequena, nunca teve seu talento
reconhecido em vida (a maior das injustiças que se pode fazer a um gênio). Só
postumamente a beleza imagética da sua lírica - fortemente marcada por temas como a
tristeza, o desespero, a solidão, a loucura, a morte, a paixão pela irmã, a religiosidade (busca
de Deus) - foi descoberta. Hoje a crítica mundial reconhece Trakl como o maior
dos poetas da chamada "poesia expressionista alemã".
Na minha adolescência, enquanto a obra de
Dostoiévski monopolizava minha atenção no romance, nos versos de Trakl eu
matava meu vício em poesia. Foi o poeta que mais li nesse período tão difícil
da minha vida – quando lutava contra sérias adversidades sociais e familiares para
conquistar a duras penas minha formação intelectual. Assim me lançava de peito
aberto numa missão sobretudo difícil, uma vez que, à diferença da maioria dos
meus pares etários e condiscípulos, nunca me dei por satisfeito com a limitada
educação que me era oferecida. Naqueles idos eu
contava 15 anos de idade e agia sob influência direta do meu então professor de
Literatura, Rômulo S'antanna (in memoriam),
um jovem germanista que, no correr das aulas, havia percebido meu sincero interesse
pela poesia simbolista francesa, especialmente pela obra de Arthur Rimbaud.
Coube ao Rômulo apresentar-me à escola expressionista em língua alemã. De certa maneira, ele também lançou as bases de um movimento da minha vida que, nos anos
seguintes, só se aprofundaria: a minha ligação estreita com a cultura erudita europeia
e, especialmente, alemã.
Também nesse ano iniciei meus estudos de violão
erudito em conservatório (o único estabelecimento de ensino que frequentei na
vida que foi capaz de me proporcionar alguma felicidade), submetido a uma
rigidez de aprendizado incomum. Eu não sabia, mas aquelas peças se
encaixavam, a inclinar-me cada vez mais para a disciplinada vida cultural alemã.
A música erudita ajudou-me a curar o silêncio da minha alma. A poesia de Trakl ajudou-me
a curar minha própria solidão.
No dia 3 de novembro de 2014 se completam 100
anos da morte de Georg Trakl. Decerto muitos ignorarão o falecimento do artista.
Não este autor, que escreve tão somente para falar das coisas que ama. E que
ama abertamente – de todo o coração – a poesia que Georg Trakl escreveu.
Na minha opinião de crítico, Georg Trakl foi
o maior poeta do século XX. Na minha opinião de leitor, nenhum outro poeta teve uma
importância tão grande na minha vida. Ainda hoje, mesmo após a leitura dos mais diversos autores, neste exercício adorável de sensibilidade que é a poesia, nunca encontrei um poeta
cujos versos fossem capazes de causar um impacto tão grande sobre mim. Trakl paralisa a minha alma.
Trakl é o arauto poético do luto silente, das
noites repletas de lágrimas, da vida pedregosa. Trakl é o portador da noite
branca, o mensageiro do lamento de um inverno solitário que há quinze anos me assombra. A poesia de Trakl é como
o sopro de um vento quente expirado por um anjo de fogo angustiado, cheio de tormento e dor, mas da qual, apesar disso, é impossível se
afastar. Pelo menos não sem sacrificar alguns dos mais belos versos que a sensibilidade poética humana já foi capaz de conceber.
FÖHN
Blinde Klage im Wind, mondene Wintertage,
Kindheit, leise verhallen die Schritte an
schwarzer Hecke,
Langes Abendgeläut.
Leise kommt die weiße Nacht gezogen,
Verwandelt in purpurne Träume Schmerz und
Plage
Des steinigen Lebens,
Daß nimmer der dornige Stachel ablasse vom
verwesenden Leib.
Tief im Schlummer aufseufzt die bange Seele,
Tief der Wind in zerbrochenen Bäumen,
Und es schwankt die Klagegestalt
Der Mutter durch den einsamen Wald
Dieser schweigenden Trauer; Nächte,
Erfüllt von Tränen, feurigen Engeln.
Silbern zerschellt an kahler Mauer ein
kindlich Gerippe.
VENTO QUENTE
Lamento cego no vento, dias lunares de
inverno,
Infância, os passos se perdem discretos em
negra sebe,
Longo toque noturno.
Discreta vem a noite branca,
Transforma em sonhos purpúreos tormento e dor
Da vida pedregosa,
Para que nunca o espinho deixe o corpo em
decomposição.
Profunda em sono suspira a alma angustiada,
Profundo o vento em árvores destruídas,
E a figura de lamento da mãe
Vagueia pela floresta solitária
Desse luto silente; noites
Repletas de lágrimas, de anjos de fogo.
Prateado, espatifa-se contra a parede nua um esqueleto
de criança.
(Tradução de Cláudia Cavalcanti)