sábado, 24 de outubro de 2015

Na era da internet, só a educação separa o artista do consumidor de lixo



Quando eu ainda era estudante de violão no conservatório, recordo-me que nós, alunos dedicados ao aprendizado da música erudita, tínhamos extrema dificuldade em obter material para o aprofundamento dos nossos estudos. À época, a internet não era tão difundida e, portanto, só com muito esforço poderíamos conseguir partituras de peças raras, escritas por compositores menos conhecidos. Também era difícil ter acesso às obras da literatura musical, que iam da historiografia, passavam pela musicologia, e chegavam aos compêndios teóricos e métodos de estudo instrumental. Da mesma maneira, para conseguirmos álbuns dos maiores artistas, só com a ajuda de professores, considerando que, no Brasil, com os diletantes em extinção, a cousa mais rara é encontrar um profundo conhecedor da arte musical erudita que não seja (ele mesmo) um músico profissional. Vídeos de concertos e "master class" então eram praticamente impossíveis de obter-se.
 
Nossa pena saltava aos olhos: tínhamos a ousadia de cultuar a música erudita num país de pouquíssima tradição - e quase nenhum incentivo! - nessa forma maior e mais sofisticada da expressão artística. Assim, deparávamo-nos com a inacessibilidade das gravações de concertos, só encontráveis em DVDs comercializados a preços caríssimos, importados da Europa ou dos EUA. Não éramos ingênuos de acreditar que um dia veríamos músicos eruditos receberem o destaque merecido na TV aberta (até hoje, em pleno ano de 2015, nada mudou nesse sentido). O motivo era evidente: a arte erudita não tem o potencial mercadológico da música popular junto ao público brasileiro; o maior mercado do mundo para esse tipo de música está na Europa, e é inegável que a música erudita é parte essencial da pulcritude que a cultura europeia legou para a humanidade. Sabíamos que a arte erudita, malgrado fosse o que de mais extático e grandioso o talento humano tinha sido capaz de produzir na história, era uma paixão de nicho, quase uma cabana inabitada no alto de uma colina, só acessível a uns poucos iluminados (acreditem: não nos orgulhávamos disso; ao contrário, sempre estivemos a desejar que mais e mais pessoas pudessem apreciar o que de melhor a arte pode oferecer aos sentidos humanos).
 
Dessa maneira, quando assisto a vídeos raros como este, datado de 1963, em que o virtuose inglês Julian Bream aparece a executar um movimento de concerto do compositor Malcolm Arnold (regido por ele próprio!), ponho-me a pensar como a tecnologia tornou acessível às pessoas em todo o mundo ricas fontes de pesquisa e estudo da arte erudita. Para aqueles que, como eu, travaram desde a infância uma duríssima batalha quando de sua educação musical formal, época em que eu precisava de muito dinheiro e empenho para importar um simples álbum da Alemanha (como era impossível encontrá-los na minha cidade, até alemão eu precisei aprender para conseguir esses materiais de estudo), é maravilhoso pensar que as novas gerações têm acesso - com extrema facilidade - a tudo aquilo que eu e meus condiscípulos só com imensa dificuldade podíamos obter num passado nem tão distante assim (afinal, eu não sou tão velho e, segundo classificações etárias oficiais, inda figuro no grupo de jovens adultos da população brasileira).

Por isso, parece-me apropriado concluir que, no século XXI, na era da internet e do mundo das relações líquidas, onde tudo desmancha no ar com a mesma velocidade da chama que se acende em um palito de fósforo, o que falta ao público não é acesso ao estudo da arte; o que falta é a orientação adequada para navegar no mar infindo das fontes culturais facilmente acessíveis com um clique no botão do telemóvel ou do computador. Desse ponto de vista, creio que somente a educação pode revelar finalmente ao público a diferença entre o lixo - produzido no plano do baixo nível cultural para consumição imediata - e a arte no seu mais elevado grau de beleza, tributo do lídimo gênio humano. Assim é que concluo: só a educação ensina a navegar nos mares virtuais cada vez mais poluídos por tolices; só a educação separa o artista do consumidor de lixo.  
 

domingo, 4 de outubro de 2015

MÚSICAS QUE RECOMENDO: O concerto de Julian Bream no Festival de Edimburgo de 1982



O violonista inglês Julian Bream (1933-) foi o artista que me inspirou a escolher o violão como instrumento no meu decênio de estudos em conservatório. Tenho por ele a maior das admirações que se pode dedicar a um artista, porquanto Bream não se tenha limitado apenas à sua condição de virtuose do violão; ele foi outrossim um pesquisador rigoroso da música, responsável por trazer a lume partituras inteiras do Renascentismo inglês no seu alcantil alaudístico.
 
Graças ao portento discográfico de Bream, hoje ninguém se atreveria a supor que os anos biliosos lhe despontassem a relevância artística, como sói acontecer com esses "artistas" de talento pífio na música popular, idolatrados por um público ouvinte cada vez menos exigente, a chafurdar a miúdo no analfabetismo musical típico de um lorpa.

Coerente com esse introito, é-me impossível não lamentar o fato de que, entre os muitos concertos a que já assisti na vida, nunca tenha podido ver apresentar-se Julian Bream, que, já com idade bastante avançada, hoje se encontra aposentado da carreira de concertista, recolhido ao repouso de sua vetustez no interior da Inglaterra.

Se levarei para o túmulo o desaponto sempiterno de não ter assistido a um concerto de Julian Bream, consola-me a ouvida dos registros sonoros que restaram do seu auge como violonista. É o caso do concerto que ele realizou no Queen's Hall durante o Festival de Edimburgo de 1982, transmitido em rádio por ocasião do Natal do mesmo ano, ora disponível no sítio Youtube. No programa, o músico inglês brinda seu público com peças do barroco francês (Robert de Visee) e alemão (Sylvius Leopold Weiss), passa pela era classicista (Fernando Sor), até chegar aos compositores dos séculos XIX (Enrique Granados) e XX (Michael Berkeley).   

Faço muito gosto em recomendar qualquer concerto de Julian Bream aos leitores do blogue, pois se trata de oportunidade sem-par, a colocar-nos em contato com a arte musical no seu grau mais elevado.   
 

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Seção Contos do blogue

Auxílio-bar
 


Este é apenas mais um daqueles barzinhos de esquina da cidade do Rio de Janeiro. O barzinho é bem simples; sem decoração, sem nada. Só tem umas mesinhas de ferro, a exibir a marca de uma cervejaria famosa, e umas cadeiras amarelas desgastadas postas na calçada. Um homem de barriga protuberante (seu nome é Clecivaldo), por trás do balcão, está a palitar os dentes, enquanto assiste ao Flamengo jogar contra o Olaria em disputa de campeonato estadual sem nenhuma importância, mas que a TV transmite mesmo assim, pois sempre há alguém disposto a perder seu tempo vendo uma partida de futebol desse nível.

Eis que Clecivaldo desvia sua atenção do televisor. Ele percebe que um cliente aproxima-se. Vira-se para atendê-lo.    

O cliente que chega veste um paletó chique, ostenta vasta cabeleira e o bronzeado digno de um surfista carioca (todo mundo percebe que é artificial, mas, se por acaso alguém tivesse a chance de questionar a origem daquele bronze, o homem vaidoso insistiria em dizer que é das praias do Cerrado). Se Clecivaldo não o conhecesse, num primeiro olhar apressado, diria tratar-se de mais um daqueles típicos “tiozão”. Sim, aqueles velhos granados, que se recusam a envelhecer, e saem, de balada em balada, à cata das “novinhas”, para reafirmar a própria masculinidade. Mas o homem do bar conhece bem aquele cliente garboso. É o ministro Fúqui, do Supremo Tribunal, que, como se quisesse provar a sua costumeira afirmação de que “ministros e juízes são homens simples e do povo", sempre que volta de Brasília,  dá um pulo ali, naquele barzinho, perdido numa esquina qualquer do Rio de Janeiro.

- Hoje eu vim ver o "Mengão" jogar e quero tomar uma cervejinha, Marivaldo - diz o ministro, todo faceiro, ao aproximar-se do balcão, esforçando-se ao máximo para demonstrar sua integração à populaça. - Me acompanha?  

- Opa. Não posso. Tô trabalhando, seu ministro. Aqui não é que nem no tribunal em Brasília. Aqui não tem assessor. Eu tenho de meter a mão na massa. Não dá pra ficar só assinando o que os outros fazem. E, mesmo que eu não tivesse no trabalho, pra ser sincero com o senhor, que é homem simples, do povo, eu tô quebrado.    

- Sem dinheiro de novo? – fez o ministro, claramente surpreso com a situação. – Eu não entendo como o teu dinheiro acaba tão rápido...

- Aqui no bar eu só ganho um salário, seu ministro.

- Só um salário? E isso é pouco? Para ser sincero, nem sei qual o valor do salário mínimo hoje em dia... Mas me dize uma coisa: por que tu não economizas?

- Mas eu economizo, seu ministro! Pego ônibus todo santo dia, na ida e na volta pra casa lá no morro. Quanto tô doente, vou pro SUS, fico na fila, mas nunca tem médico ou leito. Mandei meus cinco filhos pra escola pública do bairro. Minha mulher trabalha de doméstica. Mas, mesmo juntando o salário da gente, não sobra pra viajar nem em promoção da GOL. Mal dá pra pagar as contas do mês! Não sobra nada! Todo mês eu me fúqui, seu ministro Fúqui!

Clecivaldo pegou uma garrafa e começou a encher um copo:

- Hum. Tá pegando mesmo, hein, Clecivaldo? – observou o ministro Fúqui antes de tomar um gole da cerveja. – Olha: eu acho que posso te ajudar – e bateu o copo no balcão num sinal de firmeza doutoral.      

- Como?

- Meu amigo, eu sou ministro, eu tenho certo poderes, sabe? Eu posso, por exemplo, aumentar salários sem ninguém perceber.

- Mas isso é possível mesmo, seu ministro? Não é contra lei?

- Não, não. Não existe nada que uma boa invencionice jurídica não possa resolver.

- E como funciona isso?

- É fácil. É só criar auxílio. Auxílio serve para tudo e não serve para nada ao mesmo tempo. Tem auxílio-moradia, auxílio-educação, auxílio-funeral, auxílio-saúde. Esses aí são só para começo de conversa. Como não é aumento, mas sim auxílio, ninguém dá a mínima, nem a imprensa, nem a sociedade, ninguém reclama. Aí dá para criar outros auxílios. É usar a tua criatividade com o dinheiro público. Tem auxílio-táxi, auxílio-viagem, auxílio-almoço, auxílio-jantar, auxílio-filho, auxílio-cirurgia plástica, auxílio-academia de ginástica, auxílio-carro de passeio, auxílio-batom, auxílio-paletó, auxílio-presente da amante, auxílio disso, auxílio daquilo. No fim das contas, é tanto auxílio que eu já nem me lembro de todos eles – e riu o ministro cinicamente.

– Então é assim que o senhor quer aumentar o meu salário? Digo o salário mínimo? Criando auxílios?  

- Exatamente, meu prezado Clecivaldo – concordou o ministro Fúqui com um aceno de cabeça. - Inclusive eu já testei essa estratégia no meu próprio contracheque, porque nós, juízes, já estamos a receber auxílio atrás de auxílio...

- Ué? Mas juiz já não ganha bem pra fazer o que faz? Juiz ainda precisa receber tudo isso de auxílio pra viver?   

- Claro que sim, Clecivaldo! O que eu ganho mal dá para eu viver. Sem auxílio não dá para morar em condomínio de luxo, ter carro importado, comprar paletó em Miami, viajar de férias com a família para a Disney, brincar de pira em Paris todo final de ano.    

- Mas o senhor não diz sempre que ministros e juízes são homens simples e do povo?

- Digo, sim, Clecivaldo.

- Então por que juiz precisa de tanto luxo pra viver?  

Parecendo constrangido com a pergunta, sem ver nenhum assessor por perto que pudesse lhe safar da enrascada, o Ministro Fúqui olhou para o relógio. Fingindo ter pressa, largou o copo sobre o balcão do bar e pôs-se a sair. Disse:

- Clecivaldo, tenho compromisso. Sabe como é, né? Vida de ministro não é fácil. Depois a gente conversa. Além disso, não quero que tu percas este jogão do Flamengo com o Olaria que está a passar na TV.    

- Ministro, o senhor não pagou a cerveja ainda. Vai sair sem pagar? – perguntou Clecivaldo, empalidecido diante do caradurismo do cliente ilustre.  

- Não. O problema é que estou sem dinheiro agora.

- Mas então vai pagar como?

- Faz o seguinte: põe na conta. Depois, quando eu voltar para o Supremo Tribunal em Brasília, eu dou uma decisão liminar qualquer por lá e crio algum auxílio.

- Ah! Já sei até o nome: auxílio-bar!

- É isso aí, Clecivaldo! Tu já estás a pegar o espírito da coisa! 

sábado, 20 de junho de 2015

MÚSICAS QUE RECOMENDO: Fábio Zanon toca peças de Henry Purcell (1659-1695)


O brasileiro Fábio Zanon (1966-) é um dos maiores nomes do violão mundial. Concertista renomado, trata-se também de um autêntico "intelectual da música", como quem acompanha seu trabalho como professor e pesquisador já pôde perceber.

No vídeo que separei, Zanon participa do programa "Movimento Violão", promovido pelo SESC TV. Particularmente, quero recomendá-lo aos leitores do blogue, desejosos de conhecer um pouco sobre violão erudito (um instrumento que sofre terrivelmente com a sua extrema popularidade, na medida em que a maioria das pessoas só consegue associá-lo à música popular, jamais à música erudita). Meu interesse na apresentação de Zanon dá-se sobremodo por força do repertório escolhido. O violonista executa peças do compositor Henry Purcell (1659-1695), um dos principais expoentes do Barroco inglês.  

Quando estudante de violão, meu interesse no repertório violonístico esteve máxime atrelado às minhas pesquisas musicais nos períodos Renascentista e Barroco, até porque a música antiga sempre foi a minha maior paixão. Por isso eu sempre toquei muitas peças de Henry Purcell - incluindo algumas que são executadas no vídeo.

A propósito, música renascentista e barroca, quanto tocadas ao violão, constituem o meu maior interesse no estudo do instrumento. Então fica a dica aos leitores do blogue!
 

domingo, 14 de junho de 2015

POEMAS QUE LEIO, POETAS QUE ADMIRO: "Jaguadarte", de Lewis Carroll (1832-1898)



 
Lewis Carroll (1832-1898) foi o pseudônimo pelo qual o reverendo britânico Charles Lutwidge Dodgson tornou-se mundialmente famoso, máxime após a publicação de "Alice no País das Maravilhas", livro infantil que, com a passagem dos séculos, tornar-se-ia um dos maiores clássicos da Literatura Inglesa. 
 
Além de grande fabuista "nonsense", Carroll também tinha talento como poeta. É o que prova o poema "Jaguadarte", que eu extraí do livro "Através do Espelho e O Que Alice Encontrou Por Lá", que Carroll escreveu em 1871 como continuação de "Alice no País das Maravilhas". 
 
Na história, Alice, ao encontrar o Homem-Ovo, pede a ajuda dele para fazê-la entender o sentido dos versos de "Jaguadarte". Alice confunde-se com as palavras, que misturam sons e sentidos. Ou seja, a menina Alice quer compreender aqueles signos linguísticos, galvanizados por uma curiosa fusão de significante (elemento material, concreto, perceptível) e significado (elemento imaterial, inteligível, conceitual).     
 
Na tradução primorosa de Augusto de Campos (missão dificílima vertê-lo ao português, como pude notar ao ler o texto original em inglês), o próprio tradutor prefacia o seu trabalho, comentando que "o mínimo que se pode dizer (de Jaguadarte) é que é um dos poemas fundantes da modernidade”. Para compô-lo, Campos anota que Carroll usou “palavras-valise, que empacotam dois ou três vocábulos num só”.
 
Como aprecio a Literatura Inglesa clássica, fica minha homenagem a este grande fabulista chamado Lewis Carroll, um homem que, com sua imaginação prodigiosa, deu origem a um mundo infantil absolutamente encantador.
 
Jabberwocky
 
All mimsy were the borogoves,
 
 
The jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jubjub bird, and shun
 
He took his vorpal sword in hand:
Long time the manxome foe he sought—
 
And as in uffish thought he stood,
 
One, two! One, two! And through and through
He left it dead, and with its head
 
 
Come to my arms, my beamish boy!
He chortled in his joy.
 
 
 
 
Jaguadarte
Era briluz.
As lesmolisas touvas roldavam e reviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.
 
"Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Fefel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassura!"
 
Ele arrancou sua espada vorpal
e foi atras do inimigo do Homundo.
Na árvore Tamtam ele afinal
Parou, um dia, sonilundo.
 
E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando atraves da floresta,
E borbulia um riso louco!
 
Um dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para tras, para diante!
Cabeca fere, corta e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.
 
"Pois entao tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!"
Ele se ria jubileu.
 
Era briluz.
As lesmolisas touvas roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.
 
- Tradução de “Jabberwocky” de Lewis Carroll por Augusto de Campos
 

 

 

domingo, 7 de junho de 2015

HISTÓRIAS DA MÚSICA: O nascimento da "Sinfonia Eroica": ou Beethoven furioso contra o traidor Napoleão

O compositor alemão Ludwig van Beethoven em 1804.


Em 1803, com apenas 33 anos de idade, o jovem e impetuoso Ludwig van Beethoven começou a escrever a sua “Sinfonia nº 3, em Mi Bemol Maior” (Op. 55). Essa composição assinalava a assunção de uma temática grandiloquente, épica, em sua obra. Ademais, é apontada por muitos musicólogos como o umbral de passagem do Classicismo para o Romantismo na história universal da música.  

Tomado por uma fúria criativa, Beethoven finaliza a escrita da partitura da “Sinfonia nº 3” em 1804. Politizado, decidira alcunhá-la de “Sinfonia Bonaparte”. Seu propósito era homenagear o líder político e militar francês Napoleão Bonaparte (1769-1821), já que o compositor alemão era admirador fidedigno do ideário da Revolução Francesa. Para o jovem Beethoven, Napoleão não apenas erguia a bandeira do pensamento francês revolucionário; ele próprio personificava-a. Assim, no verão de 1804, comunicou ao seu editor a decisão de dedicar a sinfonia ao líder francês, intitulando-a de “Bonaparte”.

O líder político e militar francês Napoleão Bonaparte (1769-1821).
 
Entretanto, naquele mesmo ano, quando seu assistente contou-lhe que Napoleão havia se autoproclamado “Imperador da França”, o jovem Beethoven, que sempre teve um temperamento explosivo, mudou bruscamente de opinião. Sentindo-se traído politicamente, o compositor acusou Napoleão de trair os ideais revolucionários, rendendo-se ao jugo opressor dos tiranos que se consideravam superiores, que não acreditavam, portanto, na igualdade de direitos do homem e do cidadão.        

Furibundo, Beethoven vai até sua mesa de trabalho, convicto em desfazer a homenagem ao traidor. Abre o manuscrito da sinfonia e risca o nome “Bonaparte” da página-título. Mas risca com tanta raiva - com tanta força, com tanta fúria! - que, no lugar da dedicatória, deixa um buraco no papel.

Manuscrito da página-título da "Sinfonia Eroica",
onde se pode notar o buraco deixado no papel pela fúria de Beethoven
diante da "traição" de Napoleão Bonaparte.
 
Tempos depois, já em 1806, quando a página-título foi reescrita e o manuscrito sinfônico finalmente publicado, Beethoven deu novo nome à obra. Com efeito, intitulou-a de Sinfonia eroica, composta per festeggiare il sovvenire d'un grand'uomo. O título era uma alusão clara à decepção política experimentada pelo compositor, que não mais homenageava Napoleão Bonaparte, mas sim se prostrava a celebrar a “memória de um grande homem”. Napoleão ainda estava vivo na França, só não para Beethoven, que o considerava um traidor e antecipara visionariamente a marcha fúnebre do líder francês no segundo movimento da “Sinfonia nº 3” – agora denominada “Sinfonia Eroica”.
 
 

sexta-feira, 5 de junho de 2015

MÚSICA ERUDITA E A ARTE DE FAZER AMIGOS: Robert Schumann Hochschule - Musik für Düsseldorf

 
Esta crônica é dedicada a todos os meus amigos músicos,
especialmente ao violonistas Vinícius Linhares, Cristiano Souza e Hélio Amorim. 


Um belíssimo vídeo produzido pela "Robert Schumann Hochschule" de Düsseldorf sobre os caminhos percorridos pelo jovem estudante de música. Preso nas entranhas do cotidiano fastiento que o circunda, ele não se deixa soçobrar. Ergue-se e caminha entusiasmadamente. Extático, sabe que segue rumo ao encontro redentor com sua arte.
 
Desde muito cedo o jovem músico aprende que, nesse exército artístico chamado "orquestra", sua sobrevivência depende da combinação de pelo menos dois fatores: de um lado, a disciplina espartana imprescindível, idônea a conduzi-lo ao nível técnico reclamado pelos compositores mais exigentes em suas obras; de outro, a coragem de um soldado na frontaria, para não se render à mediocridade generalizada das pessoas vulgares e dedicar-se a uma forma refinadíssima de arte que hoje é vista como algo sem relevância no mundo. Daí vem a busca contínua e ininterrupta do jovem músico pela superação dos seus limites. Daí exsurge a síntese do seu "esforço de guerra" em prol dessa manifestação sublimatória da arte.    

Como propõe a descrição do vídeo no sítio Youtube: "Studieren heißt, sich auf eine Reise begeben! Eine Reise auf der man nicht nur besondere Fähigkeiten erlernt, sondern sich auch menschlich entwickelt und man Freundschaften mit Gleichgesinnten schließt." (Traduzo do alemão: "Estudar [música] é como embarcar numa viagem! Uma viagem na qual não se aprende apenas habilidades especiais, mas que traz também desenvolvimento humano e permite fazer amizade com pessoas que tenham as mesmas afinidades.").
 
Essa é uma descrição perfeita do que eu vivi nos muitos anos em que me dediquei ao estudo da música erudita no conservatório. Para mim, estudar música, mais do que aprender a teoria musical, mais do que aprender a tocar um instrumento, significou ir ao encontro do guia que me ciceroneou até eu descobrir quem sou; o elo com as coisas que amo no mundo. Cinzelando meu talento musical, fiz amigos que me permitiram entender que a verdadeira amizade não reside no grau de parentesco, na ascendência, na linhagem sanguínea, tampouco na proximidade geográfica. A verdadeira amizade só existe na afinidade. E "afim" são as pessoas que funcionam como os instrumentos musicais numa orquestra: quando tocam suas vidas, imediatamente encontram a harmonia nos seus gostos. Eis a arte de fazer amigos! Eis tudo.           
 
Alemanha - terra da Filosofia e da Música. Só quem já esteve lá sabe como é grande a paixão dos germânicos pela música erudita. Um paixão tão intensa que não encontra par em nenhum outro lugar do planeta. E se tu viveste algum dia essa rotina de reunir-se com amigos para ensaiar as partituras, tal qual eu vivi, é impossível não se emocionar com o videoclipe!