Não foi desta vez, Hilary. |
No meu tempo livre, desenvolvi o hábito de
perscrutar o sítio Youtube, a buscar interpretações ao vivo de grandes obras da
música erudita nas principais salas de concerto do mundo. Aquelas pelas quais
me deixo enamorar, costumo converter em arquivo de áudio. Ouço-as, pois, no
som do meu carro, qual terapia para suportar o trânsito caótico que fustiga
duramente a cotidianidade citadina no Brasil.
Hoje, ao ouvir a interpretação da virtuose
estadunidense Hilary Hahn para "The Lark Ascending for violin and
orchestra" (1914), de Ralph Vaughan Williams, gravada ao vivo com a
Camerata Salzburg por ocasião do Festival George Enescu em outubro de 2013,
vi-me tomado pelo arroubamento próprio de quem se depara com uma obra de arte
de qualidade refinada. Extático, persuadi-me a converter a gravação da peça e ouvi-la sem detença no som do meu veículo.
Entretanto, quando já se aproximava o encerramento da peça, num
momento de concentração suprema na sala, em que o silêncio só se permitia
quebrar pelas frases que o arco da concertista estava a extrair lindamente do violino,
alguém na plateia tosse com brusquidez. "Não!", gritei mentalmente, tomado de assalto pelo inconformação. Justifico meu aborrecimento: no momento em que o sujeito na plateia tossiu, para mim, perdeu-se a
gravação.
Está a parecer exagero. Sei-o bem. Aposto mesmo
que boa parte do público sequer se deu conta daquela tossida brevíssima. Mas, para um ouvido
treinado e sobretudo acostumado a ouvir as tenuidades que só a música
erudita é capaz de proporcionar num nível de linguagem artística aprofundado, a ouvida daquele indesejado
aparte tossegoso prejudicou inapelavelmente a qualidade do registro. Uma pena, pois a execução de Hahn dava-se a primor.
Música erudita é assim mesmo. Nenhum outro público é tão chato, porque ninguém é tão exigente quanto a detalhes. Na música erudita, não se admite nada menos que a perfeição. Qualquer coisa abaixo disso é inaceitável. Muito do prazer de quem gosta desse tipo de arte reside precisamente em saber que se trabalha com uma matéria-prima representativa do que de mais belo e perfeito o gênio humano já foi capaz de produzir. É normal, portanto, esperar essa postura do ouvinte erudito.
Mas rogo que o leitor não se equivoque. O fato de o meio erudito levar a arte tão a sério não é um defeito; antes o contrário: é virtude das mais nobres. O perfeccionismo da música erudita está diretamente associado ao respeito que se tem pelo público. E o mínimo que todo cultor de arte deve reclamar do artista é isto: respeito à inteligência do público. A isso chamamos profissionalismo. Pena que, muita vez, num contexto de apuro artístico tão severo, uma simples tossidela possa estragar o registro sonoro de um concerto primoroso.
Faz parte.
PS: Para o leitor que ficou curioso, a
expulsão súbita e ruidosa de ar pela boca ocorre no minuto 13:48 do vídeo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário